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Bolsonaro e Trump uniram conservadores, populistas e esotéricos new age, diz autor de livro sobre Bannon e Olavo

Acadêmico americano estuda o tradicionalismo, corrente filosófica que encontrou projeção política recente tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos ao se incorporar ao novo populismo de direita.

19 dez 2020 - 16h16
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Em foto de março de 2018, Bolsonaro assina livro de visitas da Casa Branca
Em foto de março de 2018, Bolsonaro assina livro de visitas da Casa Branca
Foto: Alan Santos/Presidência da República / BBC News Brasil

A ascensão de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em 2018 marca, nas palavras do professor de relações internacionais Benjamin Teitelbaum, uma "estranha coincidência": a chegada ao centro do poder no Brasil e nos Estados Unidos do tradicionalismo, uma filosofia religiosa marginal, que empresta conceitos do hinduísmo, do judaísmo, da cabala e do islamismo, embora não pertença a nenhuma dessas religiões nem seus seguidores se restrinjam a elas.

O tradicionalismo defende que o auge da humanidade é uma sociedade baseada em conceitos espirituais — e não materiais — e que conte com uma hierarquia social bem definida e fronteiras físicas e políticas para as relações entre as diferentes comunidades.

Ainda segundo essa vertente de pensamento, estaríamos hoje no extremo oposto ao desejável, em uma era das trevas em que o liberalismo econômico, a massificação das populações e a globalização apagam por completo a virtude de uma sociedade humana.

Relegado a seitas pequenas e à periferia da filosofia religiosa, a última vez em que o tradicionalismo ocupou posição de relevo em uma democracia ocidental foi durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1930, quando adotou uma roupagem que incluía a noção de superioridade da raça branca para dar estofo intelectual ao fascismo, na Itália.

Recentemente, no entanto, o tradicionalismo ganhou tração novamente ao ser incorporado — e ajudar a moldar — candidaturas políticas vencedoras do novo populismo de direita. Segundo Teitelbaum, é como se houvesse um campo político em comum entre o eleitor populista típico — homem, com baixa escolaridade e vida rural — e os esotéricos consumidores de livros metafísicos "new age".

É para explicar a junção entre esses mundos tão distantes que Teitelbaum, professor da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, faz um mergulho na corrente de pensamento que inspirou tanto Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump e artífice de sua eleição à Casa Branca em 2016, quanto Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo radicado no Estado da Virgínia, nos EUA.

Ele acrescenta ainda na análise o russo Alexandr Dugin, ideólogo que gravita o círculo de poder de Vladimir Putin. Teitelbaum defende que, em comum, todos eles têm a fonte filosófica tradicionalista para nortear sua atuação política. Além de se debruçar sobre os escritos dos autores, o pesquisador conduziu uma série de entrevistas com eles. O resultado é a obra Guerra pela Eternidade, recém-lançada no Brasil pela Editora Unicamp.

Os conceitos tradicionalistas ajudam a explicar posicionamentos políticos em diferentes frentes. O que têm em comum a recusa em aceitar o resultado da eleição, os ataques sucessivos à imprensa profissional e a promoção de soluções anticientíficas para lidar com a pandemia de coronavírus? Todas essas ações foram tomadas no governo Trump. E todas são ancoradas no tradicionalismo.

"Os tradicionalistas lançam mão de um conceito do hinduísmo chamado de inversão. Eles dizem que, nesta era das trevas atual, a maioria dos principais agentes de serviços de interesse público vai desempenhar a função oposta daquela que deveria desempenhar", explica Teitelbaum, para exemplificar na sequência:

"A comissão eleitoral, cujo objetivo primordial é registrar a opinião da população, provavelmente dará o resultado oposto ao que o povo decidiu. Um cientista vai espalhar ignorância sobre o mundo natural e um médico vai prejudicar seus pacientes, ao passo que o jornalista vai, na verdade, desinformar. O tradicionalismo empresta profundidade teórica e cor ao discurso populista."

Em entrevista à BBC News Brasil, ele explica como o tradicionalismo parece ter ascendido, a influência dele sobre Olavo de Carvalho e o chanceler Ernesto Araújo, sua relação com o coronavírus, o que deve acontecer com a saída de Donald Trump do poder nos EUA e a relação com a China. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O que é o tradicionalismo e como ele conseguiu chegar ao centro do poder em países como o Brasil e os Estados Unidos?

Benjamin Teitelbaum - Até recentemente, o tradicionalismo não era uma filosofia política. Em vez disso, podia ser definido como uma vertente de pensamento religiosa e espiritual. Alguns de seus escritores tiveram uma pequena representação no mainstream — a relevância política veio com o fascismo na Segunda Guerra Mundial — mas depois disso e na maior parte de sua história social, o tradicionalismo se limitou a seitas.

O tradicionalismo é o modo pelo qual as pessoas olham para o mundo hoje e identificam a globalização e o liberalismo social como sendo produtos de uma crescente ausência de fronteiras no mundo e na vida política e social.

Os tradicionalistas veem a falta de fronteiras e a secularização tanto como sintomas, quanto prova de uma profecia de que vivemos agora na idade das trevas. E eventualmente, de alguma forma, o mundo como conhecemos entrará em colapso e veremos em seu lugar um mundo mais virtuoso, que tem fronteiras de todos os tipos. Um mundo espiritualmente organizado, que não é definido por realizações financeiras ou pelo que chamam de "globalismo". Esse mundo já teria existido, mas a humanidade o perdeu, e os seguidores do tradicionalismo são aqueles que conseguem ter lampejos do que seria esse mundo ideal.

BBC News Brasil - E como esse conjunto de ideias, que esteve na maior parte do tempo restrito a pequenas seitas, chega ao centro do poder em países como Brasil e Estados Unidos? Há uma organização por trás disso ou é algo que acontece de modo fortuito em diferentes partes do mundo?

Teitelbaum - À primeira vista, é apenas uma coincidência muito estranha. A coincidência é que essa pseudoteoria política que desde a Segunda Guerra Mundial não tinha representação na política democrática ocidental de forma alguma, de repente, entre 2018 e 2019, especialmente com a ascensão de Bolsonaro, se incorpora ou passa a gravitar uma série de regimes populistas ao redor do mundo.

Não parece haver uma organização, em todos os casos, esses indivíduos (Steve Bannon, Olavo de Carvalho) chegaram ao tradicionalismo por canais próprios e independentes. Então é fortuito. Por outro lado, no entanto, é preciso olhar para o zeitgeist ("espírito do tempo", em alemão). Se pensarmos no tempo em que vivemos, nos damos conta de que é uma era de turbulência, de revolução em alguns aspectos, de transformação radical, mudanças dramáticas para frente e para trás.

E isso acontece simultaneamente em toda a Europa, América do Norte, Sul da Ásia, América Latina. Nós vemos uma insatisfação generalizada das populações com o status quo. Se esse é o espírito de nossa época, então também não me parece estranho que os intelectuais, os gurus, os pensadores procurem pelas alternativas mais dramáticas que possam encontrar para oferecer uma saída. Então essa é a questão: o tradicionalismo é a alternativa teórica mais profundamente oposta ao liberalismo que alguém poderia propor.

BBC News Brasil - Qual é a diferença do tradicionalismo para o conservadorismo que conhecemos?

Teitelbaum - As diferenças são mais nítidas quando se pensa em termos de motivação e objetivo final. O tradicionalista médio e o homem branco do campo dos Estados Unidos, ou o pequeno agricultor do sul do Brasil, podem ter valores aparentemente parecidos. Eles podem ansiar por uma volta ao passado, ou daquilo que gostavam no passado, como os papéis sociais mais definidos, ou a sensação de ter um maior controle sobre sua existência. Ou até mesmo porque sentem que lá atrás entendiam melhor a política e a economia.

Mas para o conservador, a motivação em celebrar todas essas coisas não está necessariamente em uma teoria religiosa, numa profecia que deve se cumprir sobre o mundo.

Um conservador nos EUA, por exemplo, provavelmente pensa que as coisas costumavam ser melhores e alimenta o desejo de transformar a sociedade para que se pareça mais com o que costumava ser. Um tradicionalista, especialmente nas formas mais ortodoxas — e Olavo de Carvalho não é exatamente um deles nesse sentido particular —, pensaria que o declínio atual é profetizado e necessário, porque precisamos passar por um período de turbulência a fim de voltar para onde as coisas costumavam ser boas.

Então, os tradicionalistas anseiam pela destruição. Eles podem até de uma forma masoquista ou melancólica, desejar que as coisas sejam ruins agora.

Há tradicionalistas que apoiam o liberalismo e tudo o que eles alegam odiar porque pensam que ele precisa prosperar para depois entrar em colapso. Não faz parte do conservadorismo esse apelo apocalíptico, mas faz parte do tradicionalismo esse desejo de destruição e a crença de que as coisas têm que ser destruídas para haver um renascimento em virtude.

BBC News Brasil - O tradicionalismo, de acordo com seus estudos, obteve muitas vitórias ao enfraquecer órgãos multilaterais de relações entre os países, ao levar governos a tomar decisões que contrariassem a ciência. A pandemia de coronavírus foi um golpe para o tradicionalismo?

Teitelbaum - Depende com quem você fala. Uma coisa que devemos ter em mente é que, por não ser uma filosofia política, o tradicionalismo é muito vago em alguns pontos. E assim as pessoas podem tirar significados diferentes deles. O coronavírus é um ótimo exemplo.

Dois dos tradicionalistas que acompanhei mais de perto em meu livro, Steve Bannon e Alexander Dugin, colocaram isso de maneiras diferentes, mas ambos viam o vírus como um elemento de fortalecimento de sua visão de mundo.

Para Dugin, o vírus era uma punição para o globalismo, um veneno injetado em nosso caótico movimento cosmopolita, uma resposta ao nosso desprezo pelas fronteiras e nossa incapacidade de controlar os movimentos das pessoas neste mundo. Nessa lógica, o novo coronavírus introduz no mundo um novo sistema de punição e recompensa, que favorece tanto as ilhas geográficas quanto as ilhas políticas.

Bannon, em termos diferentes, disse que achava que poderia ver com a pandemia o fortalecimento da comunidade local novamente e um alargamento das escalas geográficas.

Já para Olavo e para o chanceler Ernesto Araújo, quem considero um tradicionalista, o coronavírus foi apenas mais um exemplo de como o globalismo estava se perpetuando. Para eles, foi a China quem orquestrou este novo vírus e esta nova pandemia para unificar o mundo em torno de si.

As duas perspectivas são inteligíveis dentro da lógica do tradicionalismo.

BBC News Brasil - As pessoas certamente podem acomodar suas visões de mundo a certas filosofias, mas quando te perguntei sobre a pandemia como um fator negativo para os tradicionalistas, me referia por exemplo à perda da eleição por Trump.

É possível que uma parte dos eleitores tenha punido Trump nas urnas por sua resposta ao vírus, que parece bastante inspirada no tradicionalismo: o fechamento de fronteiras, primordialmente, mas uma certa negação da ciência em relação a máscaras e a defesa de tratamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina, ou a retirada de organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde. O que deve acontecer com esse pensamento agora que ele perdeu?

Bolsonaro já afirmou 'amar' Trump, mas não foi retribuído pelo americano
Bolsonaro já afirmou 'amar' Trump, mas não foi retribuído pelo americano
Foto: Alan Santos / Presidência da República / BBC News Brasil

Teitelbaum - Para te dar uma resposta mais completa sobre isso, eu precisaria ter visto mais apoiadores de Trump refletindo sobre a derrota dele. Mas, eles não estão fazendo isso e seguem dizendo que ele não perdeu, que há outra explicação nisso, e a explicação é a corrupção da burocracia moderna. Para os eleitores de Trump, não é uma conversa sobre o coronavírus, mas sobre como não se pode confiar nas instituições, na máquina burocrática moderna. A eleição representa isso.

Eu acrescentaria mais um aspecto. É verdade que os tradicionalistas na política subiram muitos degraus, estão mais visíveis. Mas eles continuam sendo poucos e não se pode dizer que suas ideias estejam ficando mais populares.

Por fim, a maneira como alguém como Steve Bannon interpreta a política não depende de Trump. Quero dizer, Trump era apenas uma ferramenta, na melhor das hipóteses, em sua ideologia, mas ele chegou a me confidenciar que estava muito animado com uma pré-candidata democrata à Presidência, (a líder espiritual e escritora) Marianne Williamson. Ela não adotava nenhuma das políticas de Bannon, mas falava sobre uma espécie de conflito cósmico entre o bem e o mal na sociedade.

Ela foi ridicularizada por ser o tipo de candidata esotérica na primária democrática. Mas se alguém assim passasse no crivo do processo, Bannon teria sentido que mudou algo com aquela campanha mais profunda de reposicionar os EUA como uma comunidade espiritual e lutar contra a política que se concentrava apenas em liberdade econômica ou em justiça econômica. Bannon adoraria ver debates entre sacerdotes. Portanto, seu movimento político pode ser mais profundo e não tão ligado a Trump quanto pode parecer.

BBC News Brasil - O que estamos vendo nos EUA agora, de acusações infundadas de fraude eleitoral e a recusa em aceitar o resultado, tem algo a ver com o tradicionalismo? O presidente Bolsonaro também afirmou, sem provas, que em 2018 houve fraude eleitoral no Brasil.

Teitelbaum - Isso ilustra o cruzamento de conceitos entre populismo e tradicionalismo, em uma espécie de congregação na esfera ideológica de direita. O questionamento da legitimidade da eleição é um lugar onde essas duas filosofias e suas maneiras de ver o mundo se cruzam.

O populismo dirá, genericamente, que o sistema é corrupto e os membros do establishment mandam no governo. E o sistema, ou o establishment, são os burocratas, funcionários públicos, cientistas, jornalistas, universidades, professores. O tradicionalismo diz a mesma coisa. Mas acrescenta que isso faz parte de um plano cósmico amplo e que estamos fadados a isso.

Os tradicionalistas lançam mão de um conceito do hinduísmo chamado de 'inversão'. Eles dizem que nesta era das trevas em que estamos vivendo, a maioria dos principais agentes de serviços de interesse públicos vai desempenhar a função oposta daquela que deveria desempenhar.

É realmente um passo simples para um tradicionalista se alinhar a um populista para dizer que a comissão eleitoral ou a eleição em si, cujo objetivo primordial é registrar a opinião da população, nessa era de declínio provavelmente dará o resultado oposto ao que o povo decidiu. Ou que um cientista vai espalhar ignorância sobre o mundo natural e um médico vai prejudicar seus pacientes, ao passo que o jornalista vai, na verdade, desinformar. O tradicionalismo empresta profundidade teórica e cor ao discurso populista.

BBC News Brasil - Segundo o seu argumento, parece que o tradicionalismo caiu como uma luva para o populismo e, ao mesmo tempo, viu nele uma possibilidade de chegar ao poder em países como o Brasil. Por que essa simbiose funcionou tão bem agora?

Teitelbaum - Essa é uma pergunta excelente e eu não tenho certeza se eu realmente sei a resposta. Se nós olharmos ao longo da maior parte da história, essa simbiose não funcionaria.

Se falarmos em termos sociológicos e não ideológicos, parte do que estamos vendo é que o eleitor populista médio, homem, de menor escolaridade, muitas vezes de vida rural, todos esses marcadores demográficos que conhecemos que aumentam o apoio aos partidos nacionalistas na Europa e a Trump e Bolsonaro, esse eleitor tem agora um espaço onde ele pode juntar forças com espiritualistas e esotéricos do "new age", aquelas pessoas que vão à seção de metafísica das livrarias e que normalmente são de um espaço social muito diferente do eleitor populista.

O que eles compartilham é essa insatisfação geral com o status quo, isso é o que está acontecendo aqui. Estamos vendo essa mudança mais profunda de opinião na sociedade, mas qual vai ser a funcionalidade e a profundidade dessa ligação, eu não saberia dizer.

BBC News Brasil - Como o sr. avalia a influência de Olavo de Carvalho no governo brasileiro? Ao mesmo tempo em que ideologicamente ele parece ter ditado as cartas durante um período, as posturas de Olavo são detonadoras de crises frequentes, e parece que em busca de estabilidade, o presidente Bolsonaro faz um jogo de aproximação e afastamento com ele. Faz sentido?

Teitelbaum - Olavo deliberadamente não aceitou uma posição formal no governo, que lhe foi oferecida. E isso é indicativo da personalidade mais ampla de Olavo, que é de não se associar a nada além de si mesmo. Tendo dito isso, qualquer observador do Brasil saberá que na medida em que um comentário público em uma rede social tem um papel a desempenhar na política e mudar posições governamentais, essa é a extensão do poder e da influência de Olavo. E o governo Bolsonaro está cheio de políticos que levam em consideração a rede social em sua atuação, o que torna o governo ainda mais suscetível a Olavo.

E há também um discurso sobre a influência do Olavo. Eduardo, o filho de Bolsonaro, já disse mais de uma vez que seu pai deve a eleição a Olavo. Mas, honestamente, é muito difícil dizer que isso é verdade, seria muito difícil quantificar isso, dizer que a formação dessa base eleitoral veio daí.

Mas esse é o discurso que existe em torno de Bolsonaro, e ele angariou poder político informal com essa percepção. Quanto à funcionalidade dessa figura para o governo, não acho que devamos atribuir intencionalidade, cálculo político ou mesmo lógica a tudo o que Olavo faz, mas na medida em que queremos entendê-lo, a estabilidade certamente não é um valor que ele irá perseguir. E a falta de interesse dele em estabilidade e o anseio por ruptura, destruição e demolição andam lado a lado.

E podem ser explicados pelo seu envolvimento anterior com o tradicionalismo. Olavo não atribui muito valor ao sistema político e a uma administração que funcione bem. Essas não são coisas que vão entusiasmá-lo. O que o anima é a destruição e a demolição.

BBC News Brasil - O sr. conhece bem o chanceler brasileiro Ernesto Araújo. Como ele poderá liderar um relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos sob administração de Joe Biden?

Teitelbaum - Essa é uma questão que devia ser colocada para todo o governo Bolsonaro, não só para o Araújo. Bolsonaro e Araújo apostaram na existência de uma espécie de Internacional Populista (em analogia à Internacional Comunista, fundada por Vladimir Lênin, em 1919, para congregar as forças comunistas de diferentes países ao redor do mundo) capaz de compensar a perda da China (como aliado principal), como uma força orientadora do Brasil no mundo. E nunca houve uma Internacional Populista, o mais próximo que se chegou foi a algo com a Polônia e a Hungria, e só. Então acho que é um grande erro geopolítico.

É um erro geopolítico, claro, mas se você quisesse buscar uma justificativa para isso, você teria que notar que essas pessoas, Ernesto Araújo, Olavo de Carvalho, e suas outras contrapartes, estão no governo porque não se importam muito em manter o funcionamento do sistema.

Steve Bannon (à esq.) conversa com o professor e guru conservador Olavo de Carvalho, em foto de arquivo
Steve Bannon (à esq.) conversa com o professor e guru conservador Olavo de Carvalho, em foto de arquivo
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Eles não querem ser a parte responsável de um governo. E eles não querem ver uma rede geopolítica global robusta que seria capaz de hospedar o Brasil como membro. Ainda assim, acho que foi um erro de cálculo porque eles estavam fazendo quase tudo que podiam para se alinhar com Trump e os Estados Unidos quando deveriam saber o tempo todo que estavam colocando os pés em uma canoa muito instável.

BBC News Brasil - Steve Bannon, o ideólogo de Trump a quem o senhor seguiu de perto, foi recentemente preso em um processo no qual é acusado de ter se apropriado de doações que apoiadores de Trump fizeram para construir um muro na fronteira com o México. Esse episódio mudou sua forma de vê-lo?

Teitelbaum - Não, não mudou minha visão. Eu o respeito como um pensador sério, cujo pensamento seja digno de atenção e análise. E acho que conceder isso a ele não significa que ele não possa ser um corrupto ou alguém que corrompa, ou que tenha feito ou faça outras coisas ruins. Temo que chamar alguém de interessante ou mesmo chamar alguém de inteligente à sua maneira seja visto como um elogio abrangente demais, quando não é. Ele elegeu Trump, ele fez uma série de coisas relevantes, e é interessante tentar entender a lógica dele, o porquê ele as fez.

No caso do processo, temos uma situação um tanto estranha. Ele foi preso acusado de lavagem de dinheiro para sua organização na questão do muro. O que muitas pessoas não se deram conta é que ele foi preso em um iate de um filantropo chinês. E ele estava ali por alguma razão, e a polícia rebocou o iate, para fazer buscas ali.

Eu não sou advogado, mas estudiosos do direito que olharam para o papel específico de Bannon nesse processo têm dito que os outros presos envolvidos estão em apuros, mas há boas chances de Bannon se safar das acusações de lavagem de dinheiro. Então a ação no iate poderia estar relacionada às atividades de Bannon na China. E isso é muito factível porque ele teve tantos negócios, ele movimentou tanto dinheiro, tem tantas associações envolvidas em tantos projetos, muitas das quais faliram, aliás, que não seria difícil que algo ilegal tenha acontecido em algum ponto dessas transações.

BBC News Brasil - O que explica a oposição desses ideólogos à China?

Teitelbaum - A China surge como o grande contrapeso para os Estados Unidos, quer você goste disso ou não, e Bannon e Olavo claramente não gostam. Suas razões para não gostar disso são o materialismo e o secularismo que a China representa, além de os chineses operarem uma forma de globalização na qual os Estados Unidos não estão. Mas não se trata só de uma oposição política nacionalista, há um tipo mais profundo de oposição espiritual à China. A China funciona como o avatar da falta de fronteiras do capitalismo, materialismo e secularismo que eles rejeitam.

BBC News Brasil - Em uma entrevista à BBC News Brasil em meados deste ano, Olavo de Carvalho criticou duramente seu livro quando foi publicado e negou que seja tradicionalista. Por que ele fez isso?

Teitelbaum - Bem, ele reage dessa forma a muitas pessoas que escrevem sobre ele. Então eu esperava isso um pouco, mas ainda assim fiquei surpreso. Parece-me bastante óbvio que o material sobre a tariqa (organização esotérica da qual Olavo fez parte) realmente o incomodou. Eu fiquei surpreso porque na entrevista que ele deu a você, ele diz alguns insultos a mim para depois basicamente repetir toda a história conforme contei. Há apenas algumas exceções que contradizem coisas que ele mesmo me disse em entrevistas. E ele sabe disso.

Notavelmente, ele não estava na tariqa porque estava interessado na filosofia persa. Ele estava lá porque ele estudava tradicionalismo e queria praticar. Ele não queria que fosse apenas um estudo teórico, queria viver a prática do tradicionalismo.

Outra coisa é que ele compara sua experiência na tariqa como se fosse equivalente à passagem dele pelo Partido Comunista. Isso não é real. Ele jamais traduziu as obras de Karl Marx e as distribuiu. E quando ensinou sobre comunismo aos seus alunos, ele o fez sem qualquer caráter elogioso, enquanto com o tradicionalismo, ele se debruçou em traduzir obras do judaísmo referentes a ele e continua a ensinar o tradicionalismo para gerações de estudantes.

Alguns de seus ex-alunos descrevem suas experiências em aulas como tendo sido compelidos a celebrar René Guénon (um dos mais importantes autores do tradicionalismo) como uma espécie de divindade. Então essa história está aí e não sou o primeiro a falar sobre ela, mas vê-la exposta dessa forma parece realmente ter incomodado um tanto quanto o Olavo.

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