PUBLICIDADE

Lei de Alienação Parental: amiga da pedofilia

Em muitos casos, lei tem sido usada nos tribunais brasileiros para silenciar mulheres e beneficiar homens abusadores

22 nov 2022 - 05h00
(atualizado em 3/12/2022 às 19h01)
Compartilhar
Exibir comentários
Grande parte dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre dentro de casa
Grande parte dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre dentro de casa
Foto: Istock

Um vídeo perturbador publicado pela apresentadora Xuxa Meneghel em suas redes sociais, que circula desde meados da última semana, mostra uma criança tendo uma crise de pavor ao ser retirada da sua escola para ser entregue ao pai, acusado pela mãe de cometer abuso sexual contra ela. No vídeo, é possível ouvir a justificativa da criança, que dá a entender que há algo de obscuro no tratamento que o pai lhe dá.

Toda e qualquer pessoa minimamente humana se sentiu consternada com a cena e está, desde então, preocupada com a sanidade mental e física da criança. Segundo informações que circulam pelas redes sociais, a criança teria sido devolvida para a mãe, mas não foi divulgada nenhuma informação oficial sobre o caso.

Mas, infelizmente, caso a devolução tenha sido verdadeira, é um caso isolado, diferentemente dos casos de crianças que são entregues a pais suspeitos de abuso sexual e pedofilia. E esses casos se proliferam cotidianamente graças a uma lei que tem sido alvo de uma árdua luta de mulheres que pleiteiam junto ao sistema judiciário brasileiro a sua revogação imediata. 

A Lei 12.318 de 2010, denominada Lei de Alienação Parental, surgiu em um contexto legítimo, onde pais em processo turbulento de ruptura do casamento ou da relação estável e, cujo um dos cônjuges não aceita a separação, usavam os filhos para coagir o companheiro ou companheira a permanecer casado, através de chantagem, difamação de uma das partes e outros tipos de ações que podem seguramente serem definidas como violência psicológica contra a criança ou adolescente. Isso é lamentável, mas acontece, sobretudo em uma sociedade que dá aos relacionamentos amorosos condições e exigências que atendem uma demanda moral ou sócio-econômica que nada tem a ver com os afetos importantes para se estabelecer uma família, como o amor e a afinidade, por exemplo. Essas relações são romantizadas e  resultam em uniões compulsórias e ilusórias, que acabam invariavelmente em separações ruidosas e imaturas, que são mais danosas ainda quando envolvem filhos e filhas. 

E ainda é preciso considerar que o Brasil é um dos tristes campeões das estatísticas de feminicídio, violência doméstica e relações abusivas em que as vítimas, ao decidirem abandonar a relação, enfrentam a ira de parceiros violentos que não querem perder o controle sobre seus corpos e suas vidas e irão usar todas as armas para isso, incluindo filhos. 

O fato é que essa prática pode realmente causar danos ao desenvolvimento da criança. Esse dano foi cunhado pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, em 1985, como o conceito de Síndrome de Alienação Parental (SAP). Gardner, que se suicidou em 2003, ficou conhecido pelo trabalho como perito judicial em mais de 400 casos de guarda de crianças, defendendo pais, professores e membros de congregações religiosas de acusações de abusos sexuais e de pedofilia.

Contudo, esse psiquiatra foi acusado de fortalecer a prática criminosa da pedofilia e dos abusos sexuais de menores por apresentar discursos confusos e sem respaudo científico comprovado, que mais auxiliava os pedófilos a se livrarem das acusações e criminalizavam mulheres mães que denunciavam esses crimes contra suas crianças. Ao afirmar que trata-se de uma doença e não exatamente de um crime, ele reforça o deturpado senso comum social que atribui patologia (doença) ao que deveria ser criminalizado. Dizer que a pedofilia é uma doença ainda vai de encontro com os preconceitos e estereótipos atribuídos a quem sofre de transtornos mentais.

Ademais, os apontamentos defendidos por Gardner são facilmente refutados, pois são tendenciosos e deixam escapar nas entrelinhas do seu discurso uma misoginia típica dos homens de sua época, além da total desconsideração da criança como pessoa em desenvolvimento. Quer dizer, toda a fundamentação da lei é frágil o bastante para não prever como as hierarquias de gênero que vitimizam as mulheres poderiam ser usadas para desviar o foco inicial, que era proteger a criança de violências psicológicas que comprometem sua relação com os genitores.

Não bastasse isso, há em nossa sociedade um longo histórico de desrespeito e desconsideração para com crianças e adolescentes, que pode ser entendido também como etarismo e que só começa a ser efetivamente acompanhado de perto a partir de discussões de especialistas e ativistas pelo direito da criança e do adolescente, baseadas no artigo 227 da Constituição Federal, que culminaram no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, no início da década de 1990.  

Mas apesar dos esforços de entidades e da eficiência do estatuto, ainda estamos engatinhando quando o assunto é reconhecer crianças e adolescentes como pessoas, com direitos, deveres e fragilidades inerentes a sua fase de desenvolvimento.

Em 2019, o Disque Direitos Humanos registrou 86,8 mil casos de violações de direitos de crianças ou adolescentes no Brasil. Desse total, mais de 17 mil denúncias tratavam de violência sexual.

Mas a questão é que essa lei, respaldada pelo conceito misógino que se camufla atrás de um conceito dito científico,  tem sido usada, em muitos casos, nos tribunais brasileiros para silenciar mulheres e beneficiar homens abusadores e pedófilos. Além disso, ela desconsidera os desejos e necessidades da própria criança. Mesmo considerando o legítimo contexto em que foi criada, essa lei merece atenção, cautela e minúcia na sua concepção e escrita, pois há crianças e adolescentes sendo entregues nos braços de seus algozes. 

Sabemos que grande parte dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre dentro de casa, praticada por pais, mães, parentes e amigos próximos de quem a família jamais suspeitaria. 

Em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao Congresso Nacional, a revogação do Projeto de Lei (PL) nº 7.352/2017, que visa alterar a Lei da Alienação Parental. De acordo com o Conselho, as mudanças propostas prejudicam mulheres e crianças, beneficiando homens, mesmo quando são agressores ou abusadores da mãe ou dos filhos. Além do projeto, o CNS também pede que parlamentares revoguem a lei, de 2010, pelo mesmo motivo. Entretanto, em maio, o atual presidente Jair Bolsonaro sancionou o PL. 

A Organização das Nações Unidas (ONU) também orienta coibir e banir os termos ligados à “síndrome da alienação parental” nos tribunais por entender que prejudica mulheres e crianças, em especial aquelas em situações de violência doméstica e familiar, além dos casos de abuso sexual. Entre os países que também receberam recomendações da ONU estão: Itália (2011), Costa Rica (2017), Nova Zelândia (2018) e Espanha (2020). E ainda o Conselho Europeu recomendou à Áustria e à Espanha em 2020.

No começo desse mês, peritos e consultores da ONU apelaram para o presidente eleito Lula a revogação imediata da lei de 2010.

É importante que toda a sociedade entenda, pressione e exija a revogação imediata desta lei. Do contrário, seremos todos cúmplices de danos causados a crianças e adolescentes jogados nos braços de abusadores. 

Fonte: Redação Nós
Compartilhar
Publicidade
Publicidade