Uma travesti para enfeitar galerias
Entre vasos exóticos, as travestis de estimação mostram um conceito que é desejado, mas com o qual ninguém quer arcar
Esta é uma imagem que me acompanha há muito tempo, a do vaso exótico. Desde o início da juventude, para ser exata, quando ainda era uma jovem travesti em devir, naquela fase em que a gente ainda acha que as nossas dores são tão únicas, tão ímpares. Figurou em um tanto dos poemas e pequenas crônicas que eu usava, já desde lá, para organizar o peito.
A imagem é a de um vaso incrível: exótico, excêntrico, profundamente subversivo, exposto em uma galeria de arte. Conceitualmente controverso, orgânico e naturalmente crítico. Como boa avant-garde, é por um tempo execrado: “ofende a moral”; “beira o anti-ético”; “é ofensivo chamar isso de arte”. Mas insistentemente segue lá – porque existe, foi feito no seu tempo e é filho dele, e ser odiada é um papel que alguma arte precisa cumprir.
Até que sua orgânica subversão começa a ganhar a simpatia de admiradores externos, corajosos o suficiente para verbalizá-la. Um ou outro elogio tímido em fóruns obscuros e portais de nicho passa a atrair olhares curiosos e, pouco a pouco, ele vai virando um gosto cult. Coisa de gente iniciada, indício de inteligência e de sincronismo. Coisa de quem entende de verdade o mundo.
E bom, (quase) todo mundo quer entender de verdade o mundo. Pouco a pouco, então, sua popularidade começa a crescer. Não o suficiente ao ponto do mainstream – sua subversão não pode ser ignorada tanto assim, afinal, mas popular o suficiente para ser assunto frequente e um gosto ostentado. Gostar dele passa a ser indício de rebeldia! Prova de um gosto ácido e atual, crítico, contemporâneo. Chega até a ganhar alguns prêmios!
Mas o lance com esse vaso é que uma coisa não mudou, desde seu lançamento até o seu momento mais pop: ele nunca saiu de estantes. Passeava até de galeria em galeria; foi alugado para dar um tom contemporâneo a campanhas corporativas; dizem tê-lo visto, até, em eventos governamentais. Sinal de sincronismo, né? De atualidade.
Mas nunca se assentou em casa nenhuma. Porque não combinaria, obviamente, né? “Minha decoração é muito básica pra ele”. “Até queria, mas eu ia ter que mudar a decoração inteira pra ele encaixar”. “Amo, mas lá em casa não teria nada a ver”. “Não cabe”. Versões simplificadas foram vendidas a rodo e produzidas em escala industrial, mas ele mesmo, nunca.
“Não é apropriado para o ambiente familiar, né...”.
Uma das primeiras coisas que o início da vida adulta me mostrou foi o quão não-minha era essa percepção. Ou melhor: era profundamente minha, sem dúvidas, mas nada tinha de inédito, ímpar ou original. Era também minha porque era coletiva – porquanto eu mesma o era. O sou. Fragmento deste coletivo e público corpo travesti.
Exaurem a paciência e a memória os tão frequentes comentários, com pontas mal disfarçadas de desdém, de que "O Assunto" está popular demais; de que ser trans teria “virado moda”; que “agora só se fala disso”. Mas quem fala? Como fala? Onde efetivamente passamos a caber e como?
Olha-se para um lugar e se há uma travesti lá, presume-se: “é inclusivo!”; “estamos avançando!”. E decerto estamos, mas ainda parece permanecer misteriosa a verdade mais fundamental da nossa dor. Nós de fato, genuinamente, organicamente, não cabemos. Nossa natural subversão é provocativa demais e só pode ser diluída até certo ponto, mesmo que se tente (e como se tenta).
Quer-se uma travesti em todos os espaços, dizem. Representadas! Mandando! Ganhando! Mas o preço de entrarmos é sempre a nossa mudança, não a do outro. É necessário nos fazermos sempre, em algum grau, mais “adequadas” a caber e a estar e assim passa uma travesti pela porta, mas apenas pela metade. Apenas a metade de fora. Apenas em conceito, em ideia – alheia.
O que foge da percepção é que espaço nenhum nos absorve de fato incólume. Se segue estável, de pé e sem rachaduras, o que recebeu de nós foi apenas uma imagem, um fetiche. Em espaços estáveis e firmes, não somos nós quem de fato está ali - ou somos nós, mas não de fato.
Nos entender pressupõe 'desentender' o mundo e este é o início de uma das mais íntimas e violentas subversões. Nossa natureza – coletiva, social, pública – é presságio de um amanhã que viu o hoje queimar. Sem fósforos e molotovs em prontidão, mão alguma nos entendeu de fato. Ainda.