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"Homens grávidos" e "mães travestis": o sensacionalismo que prolonga a dor

Polêmicas sobre parentalidade de pessoas trans e travestis distorcem demanda importante dos corpos reais que seguem pedindo reconhecimento

8 ago 2023 - 05h00
(atualizado em 26/10/2023 às 09h27)
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 A parentalidade de pessoas trans e travestis desestabiliza noções e conceitos bem sólidos do senso comum como “pai” e “mãe”
A parentalidade de pessoas trans e travestis desestabiliza noções e conceitos bem sólidos do senso comum como “pai” e “mãe”
Foto: iStock/Vladimir Vladimirov

A parentalidade de pessoas trans e travestis é um assunto discretamente quente. Não chega a disputar espaço em primeiras páginas e trending topics, mas vem ganhando gradual visibilidade nos últimos anos – seja com as eventuais notícias (em tom um pouco 'circo dos horrores') do “homem que pariu” e de casais de pessoas trans esperando bebê, seja nas complexas e acaloradas discussões que acontecem em círculos mais específicos, como os da obstetrícia e da humanização do parto. Não é para menos: o assunto desestabiliza noções e conceitos bem sólidos do senso comum, como “pai” e “mãe”, e se insinua para uma fronteira que sempre foi difícil para a moral hegemônica ver cruzada por corpos como os nossos: a da família e de sua sacralidade.

Não foi ontem, no entanto, que pessoas trans e travestis passaram a exercer parentalidade. Na verdade, é seguro dizer que o fazemos desde sempre: para além do script da 'família-margarina' - no qual um homem cis conhece uma mulher cis, namoram, casam, têm filhos e vivem felizes para sempre - sempre existiram crianças nascendo e adultos as criando. Nem sempre numa relação vista como convencional. Nem sempre por opção. Nem sempre com legitimidade reconhecida pela sociedade e pelo Estado. 

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Desde a juventude estive cercada de travestis e pessoas trans que haviam tido filhes, na verdade. Entre elas, algumas histórias de superação e reencontro; algumas histórias de violência e alienação; algumas histórias de 'família-margarina' até – mas raras. Sempre nas sombras, no entanto: a travesti que é tratada como “pai” e não pode buscar a criança na escola; que vê aos finais de semana porque a criança cresceu e insiste, mas é impedida de ter contato real com a rede de cuidado cotidiano; o homem trans que finge que não o é para não ter problemas durante o ciclo gravídico-puerperal e evitar surpresas com o conselho tutelar ou com a vizinhança; a mulher trans que mudou de cidade e não pode contar pra ninguém “seu segredo” para preservar a integridade daquele núcleo familiar.

Talvez, o ponto de virada para que o assunto tenha ganhado novo fôlego, não seja a existência das nossas parentalidades, mas a recusa firme de seguirmos às sombras, expressa nas reivindicações cada vez mais contundentes para que os serviços, políticas e instrumentos correlatos nos enxerguem e atendam – não “mais”, mas pelo menos tanto quanto a qualquer outra pessoa. 

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Pode parecer pouca coisa para alguns, mas as implicações disso não são pequenas. Implica, de início, que todos os instrumentos de acompanhamento e apoio ao ciclo gravídico-puerperal – de órgãos públicos a organizações civis – bem como os voltados para a saúde sexual e reprodutiva e atenção à família, reconheçam de fato o que já é uma verdade jurídica no Brasil: que há pessoas capazes de engravidar e parir que não são mulheres; que há homens que precisam acessar serviços e políticas relativos à gestação e parto; que há mães que também são genitoras sem terem engravidado e parido e, fundamentalmente, que não há uma relação direta entre todos esses processos e ser homem ou mulher. Implica numa dissociação real, prática e pragmática entre os conceitos de “pai”/“mãe” e os processos fisiológicos que políticas de saúde devem suportar – não para ignorar as demandas e especificidades das ordens da identidade e do social, o que seria um desastre, mas para deixar de tomar identidade e relação social (pai ou mãe) como sinônimo de biologia, permitindo que corpos (tanto os que são trans como os que não são!) possam ser vistos e assistidos na sua integralidade e nas suas verdades. É só assim que é possível fazer políticas de saúde e de assistência social universais e de qualidade.

Aquele mantra, tão frequentemente repetido, de que “a pessoa pode achar que é o que quiser, mas biologicamente é mãe/pai” precisa ficar no século passado, ao qual fingia pertencer, e já não se configura argumento, mas mera recusa moral à alteridade. Existem homens capazes de engravidar e amamentar. Existem mães e genitoras mulheres trans e travestis. Existem pessoas exercendo parentalidade e/ou vivenciando o ciclo gravídico-puerperal que não são nem homens nem mulheres. Isso não está aberto a discussão mais: existem socialmente, existem juridicamente e existem politicamente. É uma verdade do nosso tempo que não depende do gosto ou da autorização de quem quer que seja.

Abandonar as premissas de uma saúde pública e de uma rede de assistência universais e de qualidade por conta da dificuldade de se admitir que o mundo real não espelha nossas projeções e vontades tem efeitos conhecidos e previsíveis: produz violências e potencializa vulnerabilidades.

Não é mais tempo (se é que já foi) de discutir “se” e “será que”. É hora do “como” – porque até o “quando” já tarda.

NÓS Explicamos: o que nunca dizer para pessoas trans:
Fonte: Redação Nós
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