Defendemos a integridade física e psicológica de quais infâncias?
A família tradicional brasileira é uma entidade interessada em defender discursos normativos, não os corpos infantis
Publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, em 02 de fevereiro de 2023, um requerimento propõe investigar supostos maus-tratos em relação ao atendimento clínico a crianças trans atendidas pelo Hospital de Clínicas (SP). Texto da proposta, encabeçada por vereador do partido União Brasil, supõe que tais crianças estariam sob influência de terceiros e que a inibição da puberdade iria expô-las a "mais transtornos psicológicos" e "graves sequelas corporais".
O pânico em torno da infância vem sendo fomentado em casas legislativas, ante o pretexto de que crianças estão sendo orientadas a tomar decisões "irreversíveis" e "dramáticas". Setores da política têm se interessado em assustar a população com previsões catastróficas do futuro, como se a família, enquanto instituição, devesse traduzir o lento avanço dos direitos LGBTs como uma grave ameaça à sua própria sobrevida. Similar a falas da ex-ministra Damares Alves, agora senadora, quando afirmou deliberadamente e sem provas que crianças da Ilha de Marajó (PA) eram submetidas a abusos das mais diversas ordens, tendo os próprios dentes arrancados para que fizessem sexo oral com maior facilidade. Ela afirmava que nada disso mudaria, a menos que seu candidato, Jair Bolsonaro, na iminência de perder o segundo turno, saísse vitorioso do que chamou de "guerra espiritual".
O "bem" contra o mal. Essa bandeira do perigo, levantada para mobilizar a população a ser uma antagonista da diversidade sexual e de gênero, tenta tirar proveito de parte da opinião pública, conhecida por condenar tudo que não lhe pareça coerente. Dizer que somos o país que mais comete assassinatos transfóbicos parece que banaliza o fato de que estamos falando de pessoas que tinham ideias, vulnerabilidades, viviam em redes, que suas partidas geraram perdas. Muito se fala que há uma expectativa de vida de 35 anos, mas, como bem lembra a intelectual Viviane Vergueiro, essa na verdade seria uma expectativa de morte. Tal é o tamanho do valor negativo associado à transexualidade que somos lembradas somente como um retrato desbotado, a imagem da Aids e da criminalidade dos anos 1990: assaltantes e descontroladas.
Em uma geração em que as crianças começaram a não serem retratadas de forma demoníaca já passamos a receber acusações de que há uma "epidemia trans" em curso. Esses discursos querem disputar sua longevidade a troco de rifar vidas tidas como "menores". Sabemos que algumas crianças, ao contrário de defendidas, são colocadas desde cedo em uma não-posição, um estado impronunciável, incapaz de conversar com quem quer que seja sobre o que estão sentindo. Expostas a categorias como "viado" e "sapatão" que, mais do que insultos, caso levemos a sério o caráter performativo da ofensa, lição elementar da filosofia de Judith Butler que investiga a história dos lugares sociais, orientam crianças a um sentimento de aversão ao desvio. Não podem se identificar com o que o mundo adulto elege como mortífero.
E diferente da violência que dizem sofrer os setores conservadores quando apontam que a família está sendo destruída pela homossexualidade, jamais poderemos mensurar os danos que o discurso da homofobia causou à sexualidade humana, sobretudo dentro do "lar". Ora, não está a senadora Damares, quando detalha cenas de abuso na frente de crianças que assistem ao culto, incorrendo justamente no que condena?
Família tradicional brasileira é uma entidade interessada em defender discursos normativos, não os corpos infantis. O terror que esses setores estão destinando à infância não é de nenhuma ajuda às próprias crianças, pelo contrário, colabora ativamente com um quadro de desassistência que repercute em menos repertório, maior exposição a riscos, estigmas e estresse social.
Afirma-se que é perigoso ser trans porque ainda entendem transição como a passagem de um lugar fixo para outro lugar fixo, mas transição não é o deslocamento entre duas polaridades, e sim a saída da dicotomia "homem e mulher" para uma posição estratégica frente à diferença sexual, assim ensinam Jack Halberstam e Paul Preciado.
Para levar isso a sério, será preciso não mais se resignar diante da pressuposição de que a cisheterossexualidade está presumida no início da vida humana, e considerar arbitrária a interpelação em fazer crianças se dobrarem à diferença sexual para que se tornem cidadãs. Ou a integridade física e psicológica de determinadas infâncias permanecerá mesmo entendida como desimportante?