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Câncer de mama anda de mãos dadas com o abandono de mulheres negras

No Brasil, cerca de 70% das mulheres diagnosticadas com câncer de mama têm que lidar com outro percalço: o abandono de seus respectivos companheiros

13 out 2022 - 15h01
(atualizado às 15h25)
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Mulher negra e o símbolo da conscientização sobre o câncer de mama
Mulher negra e o símbolo da conscientização sobre o câncer de mama
Foto: Imagem: Alma Preta Jornalismo / Alma Preta

No Brasil, cerca de 70% das mulheres diagnosticadas com câncer de mama têm que lidar com outro percalço: o abandono de seus respectivos companheiros, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Mastologia. As informações mostram ainda que a cada 100 mil mulheres, 56 vão desenvolver a doença, sendo que 13 delas não sobrevivem. Desse total de mortes, existe a possibilidade das mulheres negras morrerem quatro vezes mais do que as brancas.  

Uma das razões para as mortes seria socioeconômica: segundo levantamento do IBGE de 2019, 70% do público que utilizava o serviço do SUS era composto por mulheres, sendo 60,9% delas pretas ou pardas. Ou seja: a luta contra o câncer de mama é maior entre as mulheres negras, que muitas vezes têm que lidar com o diagnóstico e tratamento sozinhas. 

É o caso da empregada doméstica Ana Maria de Jesus Rosa, de 43 anos, que descobriu o câncer de mama há oito anos. Mesmo com histórico na família, o diagnóstico veio de forma tardia devido à sobrecarga do SUS na cidade de Guarulhos (SP). Quando a equipe de saúde confirmou o câncer de Ana, já era tarde demais para salvar a mama, que precisou ser totalmente removida. 

"Lembro que saí da consulta arrasada. Demorou tanto para sair os exames, mais de ano. Por conta disso o câncer aumentou. Não tinha o que fazer, precisava tirar a mama para eu não morrer. Eu fiquei muito asssutada", lamenta.

"Nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida"

Ana Maria conta à Alma Preta Jornalismo que até então seu antigo companheiro dizia que daria tudo certo e que logo ela iria se recuperar do câncer de mama. No dia em que ela recebeu a notícia de que seria necessário retirar a mama, no entanto, o comportamento dele mudou drasticamente. Juntos há 20 anos, Ana relembra que a atitude do ex-companheiro foi uma surpresa ruim depois de tudo que passaram em tanto tempo de relacionamento. 

"Eu cheguei em casa e contei para ele por que eu precisava de colo. Estava com medo, afinal, perdi minha mãe para o câncer de mama. Quando eu disse que ia precisar remover toda a mama direita ele me olhou e disse 'e como eu fico com tudo isso? Vou ser obrigado a lidar com uma mulher mutilada, incompleta?' Levantou e saiu de casa. Nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida", desabafa a empregada doméstica. 

No entanto, Ana não foi a única mulher negra a ser desprezada pelo companheiro quando descobriu o câncer de mama. A recepcionista hospitalar Jailda Pereira, de 49 anos, também passou pelo mesmo trauma em 2018. Casada há 15 anos e mãe de duas filhas, a mulher negra conta que desde que soube da doença, seu ex-marido parou de falar com ela. Ele nunca a acompanhou a nenhuma consulta de saúde durante o tratamento.

"Eu passei por tudo sozinha. Quimio. Rádio. Cirurgia. Ele sequer foi me ver no hospital. Até que um dia eu cheguei exausta em casa e perguntei o que havia feito para receber aquele tratamento de silêncio. Foi quando ele disse 'tenho nojo de você. Para mim você não é uma mulher de verdade. É um ser aleijado, mutilado. Tenho vontade de vomitar só de pensar em chegar perto de você, por isso fico quieto'. Eu perdi o chão naquele momento", relembra a recepcionista. 

Separação

A recepcionista Jailda Pereira relata que depois da fala do marido, a convivência na casa se tornou insustentável. Além de parar de falar com ela definitivamente, o homem passou também a tratar mal as duas filhas do casal, que tinham 11 e 4 anos na época. Aborrecida com as atitudes, ela relembra que chamou o ex para uma conversa, a fim de propor a separação.

"Já que eu estava tendo que lidar com tudo sozinha, eu não via mais sentido em continuar vivendo na mesma casa que ele e mandei ele embora. Foi aí que eu vi o monstro que eu me casei. Ele ficou irado dizendo que não compensava ele ir embora se em breve eu iria morrer e tudo ficaria para ele. Falou que estava contando os dias para eu morrer e ele botar outra mulher 'inteira' no meu lugar. Foi humilhante", destaca Jailda. 

"Depois de muita briga, uma internação devido ao nervoso que passei, ele topou ir embora sem levar nada, mas com uma condição: que ele não tivesse obrigação nenhuma com as nossas filhas. Perguntei o motivo de ele não querer mais saber das meninas e ele disse 'elas carregam seu sangue imundo e doente. Logo, logo vão desenvolver esse câncer de mama também e eu não quero ser pai de nenhuma mutilada'. Saiu de casa e desde então cortou contato com as meninas", completa. 

Ana Maria também foi alvo da incompreensão do parceiro durante o processo de separação. Ela relata que o ex-marido ficou noivo de outra mulher enquanto ainda morava com ela, e dizia que a culpa era dela, que estava doente e não podia satisfazer suas necessidades masculinas. 

"No dia que ele foi embora, a atual mulher dele veio ajudar a buscar as coisas em casa. Eu estava deitada e muito ruim, pois havia feito quimioterapia um dia antes. Mal conseguia reagir. Ele veio se despedir e falou que se eu sobrevivesse ninguém nunca mais teria interesse em mim porque eu não era mais uma mulher. E que eu teria sorte se algum homem chegasse perto de mim sem nojo. 'Uma mulher sem seios não dá tesão em ninguém'. Essa frase não sai da minha cabeça até hoje", salienta Ana Maria. 

Medo da intimidade

Curadas do câncer de mama, Ana Maria e Jailda seguiram com suas vidas após a separação. Contudo, desde então, ambas relatam que nunca mais se aproximaram afetivo-sexualmente de ninguém devido ao medo da rejeição em momentos de intimidade. 

"O que ele [ex-marido] me falou sobre eu ser mutilada fica martelando na minha cabeça. Eu tive oportunidade de sair com outras pessoas, mas sempre bloqueei isso em mim, por vergonha, principalmente. Na verdade, o câncer de mama levou junto a minha parte mulher", comenta Ana Maria. 

Atualmente, a mulher negra faz tratamento psicológico contra a depressão, mas afirma não se sentir preparada para ter intimidade devido à retirada da mama. A empregada doméstica está juntando dinheiro para conseguir colocar silicone no local da cirurgia. 

Já a recepcionista Jailda Pereira diz sentir que já passou da idade de se relacionar, e que já se acostumou com a ideia de viver apenas com as filhas, sem a companhia de um marido. As meninas, segundo ela, incentivam para que ela se relacione novamente, mas Jailda diz ter medo.

"Eu já não sou uma mulher jovem, então fico pensando que meu destino é ficar sozinha. Se eu não consigo me olhar no espelho nua, penso que ninguém vai querer olhar, sabe. Eu não quero ouvir aquelas palavras [do ex] novamente, então, prefiro me privar de intimidade. O câncer me levou o seio, o companheiro, e a vontade de ser mulher de novo", finaliza. 

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Alma Preta
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