Dreamcast: o console à frente do seu tempo que morreu cedo demais
Embora tenha tido vida curta, o último console da Sega demonstrou espírito ousado e criativo
Quando a Sega lançou o Dreamcast em 27 de novembro de 1998 no Japão (e em 9 de setembro de 1999 nos Estados Unidos), a indústria dos videogames vivia uma transição importante. O PlayStation havia consolidado o domínio dos CDs como mídia, o Nintendo 64 ainda resistia com cartuchos e a próxima geração já batia à porta. Foi nesse cenário que a Sega apostou todas as fichas em um console ousado, moderno e repleto de inovações.
O Dreamcast era um vislumbre do futuro: gráficos avançados, internet integrada, periféricos criativos e uma biblioteca que mesclava ousadia com a tradição arcade da Sega. Ainda assim, sua trajetória foi breve e dolorosa, tornando-se um dos capítulos mais melancólicos da história dos videogames.
Confira a seguir aqui no Game On mais detalhes sobre a história do Dreamcast, o último videogame da Sega.
Conectividade online pioneira
Entre todas as inovações do Dreamcast, talvez a mais visionária tenha sido sua aposta na internet. Em plena era da internet discada, em que a maioria dos jogadores ainda não associava videogames à ideia de estar conectado, a Sega ousou incluir um modem embutido no console, algo completamente inédito no mercado.
Isso permitia não apenas a realização de partidas online, mas também a navegação em páginas da web, troca de e-mails e até o download de conteúdos extras, como fases adicionais e atualizações, algo quase impensável em 1999.
Jogos como ChuChu Rocket! e, principalmente, Phantasy Star Online, revolucionaram ao oferecer experiências online em um console doméstico. Esse último título, em especial, é considerado o primeiro grande MMORPG de console, estabelecendo um modelo que até então parecia restrito aos computadores, e que só seria popularizado anos depois no PlayStation 2 e no Xbox.
Pela primeira vez, jogadores de diferentes lugares do mundo podiam se reunir em um universo persistente, explorar dungeons, enfrentar monstros e cooperar em tempo real — algo revolucionário para o público de consoles, acostumado até então a experiências essencialmente offline.
VMU e a ideia de segunda tela
Se a conectividade online mostrava o futuro da interação entre jogadores, o VMU (Visual Memory Unit) revelava como a Sega pensava além do conceito tradicional de um simples cartão de memória. Em vez de se limitar ao armazenamento de saves, o acessório trazia uma pequena tela LCD, botões direcionais e até a possibilidade de funcionar de forma independente, como um mini console portátil. Essa proposta, inédita para a época, adicionava uma nova camada de interatividade ao Dreamcast, transformando cada partida em algo mais dinâmico e criativo.
O VMU podia ser inserido dentro do controle do Dreamcast, exibindo informações extras em tempo real. Em jogos de esporte, por exemplo, mostrava táticas e jogadas secretas fora da visão do adversário na tela principal. Em RPGs e aventuras, servia para acompanhar status de personagens, barras de energia ou até mapas auxiliares. A Sega também aproveitou o dispositivo para integrar minigames portáteis, permitindo que o jogador levasse uma parte da experiência consigo. Um dos exemplos mais lembrados é o cuidado com os Chao de Sonic Adventure: criaturas virtuais que podiam ser criadas, alimentadas e treinadas no VMU, em uma mecânica semelhante ao sucesso dos Tamagotchi, muito populares na época.
A genialidade do VMU estava em propor algo que só se tornaria tendência muitos anos depois: o conceito de uma segunda tela. Antes mesmo de o Game Boy Advance se conectar ao GameCube, antes do Wii U GamePad tentar trazer a ideia de um controle com tela própria e bem antes de smartphones serem usados como suporte em jogos de console, o Dreamcast já oferecia essa experiência. Era uma solução simples, mas extremamente inovadora, que ampliava as possibilidades de interação sem depender da televisão.
Uma biblioteca criativa e marcante
Apesar de sua curta existência, limitada a apenas três anos no mercado, o Dreamcast deixou um catálogo de jogos que se tornou lendário, tanto pela qualidade quanto pela ousadia criativa. A Sega, que já vinha de uma tradição forte nos arcades, apostou em trazer experiências únicas e variadas, equilibrando franquias clássicas com propostas inovadoras que ajudaram a definir tendências para o futuro da indústria. Entre os destaques:
- Sonic Adventure – Logo no lançamento do console, a Sega mostrou que estava disposta a impressionar com Sonic Adventure, o primeiro jogo em 3D do ouriço azul. Mais do que apenas um título de estreia, ele foi pensado como vitrine tecnológica do Dreamcast, exibindo gráficos avançados, cenários amplos, câmera cinematográfica e uma jogabilidade que levava o mascote para além dos limites do 2D. A presença dos Chao, criaturas virtuais que podiam ser criadas e treinadas, adicionava uma camada de experimentação inédita, especialmente com o uso do VMU.
- Shenmue – Um dos jogos mais ambiciosos da história, misturando mundo aberto, rotina diária, minigames, clima dinâmico e narrativa cinematográfica. Custou cerca de 70 milhões de dólares, um dos maiores orçamentos da época.
- Crazy Taxi – Frenético, com partidas rápidas e trilha sonora marcante de bandas como The Offspring e Bad Religion. Tornou-se ícone do estilo corrida arcade.
- Jet Set Radio – Estreou o cel-shading como estilo visual, antecipando tendências estéticas que marcariam toda uma geração de jogos.
- SoulCalibur – Considerado um dos melhores ports de arcade para console, elevando o padrão gráfico da época.
- Resident Evil Code: Veronica – Uma das experiências mais cinematográficas da franquia, exclusiva temporária do Dreamcast.
Além disso, outras franquias como Virtua Tennis, Power Stone e Skies of Arcadia reforçaram a imagem do console como berço de ideias ousadas.
O peso da concorrência e erros da Sega
Apesar de suas inovações tecnológicas, o Dreamcast enfrentou sérios obstáculos que comprometeram seu sucesso. A Sega ainda carregava a má reputação deixada pelo periférico 32X e o Saturn, fracassos comerciais que minaram a confiança de jogadores e desenvolvedores.
Além disso, o console utilizava discos GD-ROM, mais baratos que DVDs, mas limitados em capacidade e sem o apelo multimídia do PlayStation 2, lançado em 2000 com gráficos poderosos e a vantagem de reproduzir filmes em DVD, um atrativo irresistível na época.
Para piorar, a segurança do sistema foi rapidamente quebrada, abrindo as portas para a pirataria em larga escala. A ausência de suporte de grandes editoras, como a Electronic Arts, que deixou de lançar jogos de peso como os da série FIFA, reduziu ainda mais o potencial do Dreamcast no mercado ocidental.
Com vendas em queda e dívidas crescentes, a Sega não resistiu: em 31 de janeiro de 2001, a empresa anunciou o fim da produção do console e sua saída definitiva do mercado de hardware, passando a atuar apenas como desenvolvedora third-party.
Uma bela estrela cadente
O Dreamcast vendeu cerca de 9 milhões de unidades em todo o mundo — número modesto frente aos 160 milhões do PlayStation 2. Ainda assim, deixou uma marca profunda na indústria.
Conceitos como jogo online, segunda tela, gráficos em cel-shading e mundos abertos ambiciosos foram popularizados ou antecipados pelo console. Para muitos fãs, ele foi uma estrela cadente: brilhou intensamente, desapareceu rápido, mas iluminou o caminho que outros consoles seguiriam depois.
Mais de duas décadas após sua morte, o Dreamcast continua cultuado como um dos consoles mais criativos já lançados. Um fracasso comercial, sim — mas também um legado de inovação que mostrou o quanto a Sega estava disposta a arriscar para reinventar os videogames.