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Na Sibéria, muitos russos nem sabem que a Copa do Mundo está rolando

Leste da Rússia contrasta com cidades que recebem o Mundial da Fifa

26 jun 2018 - 05h10
(atualizado às 05h10)
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O monge budista Anatoly Ayuvith sabe prever o futuro, tem poderes para curar doenças e ainda consegue saber se vai chover. Mas, num dos cantos mais remotos do imenso território da Rússia, na Sibéria, ele desconhece a existência da Copa do Mundo. "Não conheço", lamentou o monge. "Sei que o Brasil sempre foi o melhor no futebol. Mas acho que nossa seleção está melhorando", comentou, hesitante e sem graça diante de um assunto que provara o limite de seus poderes.

Poucas horas antes do pontapé inicial do jogo entre Rússia e Uruguai, nesta segunda-feira, a região à beira da fronteira com a Mongólia parecia estar numa realidade distante. A menos de cinco quilômetros do monge, a produtora de leite Lyubila Tserenyona falava na beira da entrada com propriedade sobre a Copa. "Hoje nós jogamos contra a Argentina ou algo assim...", dizia, numa referência aos uruguaios.

A questão da seleção nacional russa também é um aspecto delicado num país continental com dezenas de repúblicas, nações e etnias. "Sou do povo buriato. Não sou russa. Mas vivemos na Rússia e vamos torcer pela Rússia na Copa", disse. Ao saber que a reportagem era do Brasil, ela abriu um sorriso. "Eu adorava o Brasil nos anos 90 com Maradona e Pelé", insistiu.

Ali, a mais de 5,1 mil quilômetros de distância de Moscou e em plena Sibéria Oriental, onde o inverno leva os termômetros a marcar 30 graus negativos por semanas, a Copa do Mundo da Rússia é apenas uma miragem, assim como é a participação dessa população no desenvolvimento econômico do governo de Vladimir Putin. Com 1 milhão de habitantes, a República da Buriácia conta com 25% de budistas entre sua população, um dos números mais elevados em toda a Federação da Rússia.

Na província ao lado, Irkutsk, a situação é um pouco mais cômoda no que se refere ao acesso às imagens dos jogos. Mas, ainda assim, a Copa é tratada como um sonho. Nas estradas que cruzam a imensidão do território russo na Sibéria, nenhuma faixa da Fifa. Nenhuma referência no aeroporto local e os únicos cartazes pelas cidades trazem os heróis do esporte mais popular da região: o hóquei. Em nenhum canto das cidades de Irkurtsk se vê as imagens onipresentes de Lionel Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar.

Grande parte da população local não tem sequer uma camisa da seleção para desfilar seu orgulho com a classificação. Mesmo a imagem da partida mostrada numa televisão chinesa só ocorre graças a antenas parabólicas instaladas nos telhados.

Mas o jogo contra o Uruguai era, para parte da população siberiana, um raro momento de conexão com o restante do país continental. "Esses jogadores são da Rússia europeia. Nós somos da Rússia asiática", explicou o estudante Anton, em um dos poucos bares de Irkutsk que mostrava a partida contra o Uruguai. "São dias assim que entendo melhor o que é se sentir russo, mesmo tão distante."

A indiferença com a Copa é um sintoma de uma distância que não é só física. Baikalsk, com 14 mil habitantes e também na província de Irkutsk, é uma das 142 cidades na Rússia que estão a ponto de desaparecer. Ampliados ainda na era Soviética, esses locais apenas se mantinham como fornecedores de mão de obra para indústrias que faziam a economia da cidade existir. Assim como em Baikalsk, outras cidades viam todos seus moradores terem um só empregador, num esquema centralizado a partir da cúpula da ex-URSS.

A fábrica foi aberta em 1966 à beira do lago Baikal, que contém um quinto da água doce não congelada do planeta. Em seu auge, ela empregava mais de 2 mil pessoas e produzia 100 mil toneladas de celulose por ano. As obras começaram ainda nos anos 1950 e faziam parte de um amplo complexo militar soviético. A indústria aeroespacial necessitava de material de qualidade para pneus e outros itens de seus jatos.

FALÊNCIA

Mas, no caso de Baikalsk e de tantas outras cidades com apenas uma indústria, o sistema faliu. Em 2013, o governo russo chegou a avaliar que precisaria de US$ 33 bilhões (R$ 124,6 bi) para modernizar as mais de cem cidades à beira do colapso. Preferiu gastar US$ 50 bilhões em Sochi para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 e outros US$ 11 bilhões na Copa.

Sem dinheiro, o resultado foi o colapso de dezenas dessas cidades. Baikalsk era uma delas, devastada com a falência da papeleira BPPM que empregava praticamente todas as famílias do condado. No fundo, a cidade perdeu sua razão de ser.

O Estado visitou a fábrica e encontrou cavalos pastando no que era seu pátio, além de paredes deterioradas e tetos à beira de um desabamento. "O fim da fábrica mudou nossas vidas", contou Ludmilla, vendedora de legumes em uma feira local da cidade de Baikalsk. Seu marido, que dependia da produção de celulose, passou a beber e a violentá-la. Os dois se separaram e, pouco tempo depois, ele morreu em consequência do alcoolismo. Ludmilla, mais preocupada em sobreviver, não sabia sequer que a Rússia jogaria contra o Uruguai naquela noite.

Em silêncio, a fábrica que por mais de meio século funcionou às margens de um dos maiores lagos do mundo faz sombra hoje a um povoado que nada tem em comum com as imagens da Copa e os fogos de artifício organizados nas cidades-sede.

"O que muda na minha vida se a Rússia ganhar?", perguntou Svetlana Nikolaivna, também de Baikalsk e vendedora de peixes. Questionada se iria esperar até a noite para ver o jogo, ela deixou claro que não. "Preciso trabalhar cedo. A juventude toda já deixou a cidade. Se os velhos não trabalharem, quem vai fazer isso?"

EXPECTATIVA DE VIDA CAI

Longe da imagem que o presidente Vladimir Putin gostaria de passar ao mundo durante a Copa do Mundo de uma Rússia soberana, autoconfiante, moderna e sofisticada, as cidades satélites da Sibéria registram 25% da população vivendo hoje abaixo da linha da pobreza.

Não por acaso, em 2015, a população da província de Irkutsk surpreendeu o Kremlin ao eleger como seu governador Sergei Levchenko. Ele é um dos poucos chefes locais não endossados por Putin, num voto que foi interpretado como um recado a Moscou sobre o abandono que vive a região na Sibéria.

Não é de hoje o caráter rebelde do local. Ao final do século 19, um terço da população era composta de exilados políticos. No século 17 e de olho no comércio com os chineses, Moscou enviou para a região uma legião de cossacos. Nos anos 20, a morte do líder antibolchevique Alexander Kolchak foi orquestrada a partir de uma milícia de Irkutsk.

Hoje, porém, a periferia da província é o retrato de uma região abandonada. Dados fornecidos ao Estado pela Caritas (organização humanitária da Igreja Católica) indicam que, das 30 milhões de crianças hoje na Rússia, 15 milhões delas vivem abaixo da linha da pobreza. Praticamente todas na Sibéria.

O que ainda preocupa a entidade é o numero elevado de crianças de rua na Sibéria, o maior desde o fim da Guerra Fria. Segundo a Caritas, 4% dos menores são órfãos, enquanto as altas taxas de desemprego e renda baixa têm levado a problemas graves de desnutrição e falta de acesso à educação.

A prevalência de drogas aumentou em cinco vezes em apenas 20 anos e 30% das mortes de jovens são atribuídas ao alcoolismo. Cheirar cola entre menores e um salto de 10% nos casos de Aids em apenas um ano são outras marcas de uma sociedade que viu a sua expectativa de vida cair de 64 anos em média na década de 1990 para 55 anos em 2017.

"O processo de mudança depois do colapso do socialismo empurrou muitos para a exclusão", alerta a Caritas, em um informe sobre a situação siberiana. "De uma sociedade igualitária que a Rússia tinha como objetivo, o país está mais longe do que nunca nessa realidade", continua a instituição. "Um quinto da população russa tem hoje metade da renda do país, enquanto os 20% mais pobres detêm apenas 6% do PIB." "A disparidade entre os vencedores da modernização e os perdedores não necessariamente é visível na Rússia", alerta a instituição. "Muitos dos velhos, doentes e deficientes estão vivendo atrás de muros da privacidade ou em regiões remotas, como são os casos das cidades-satélites da Sibéria", informa a Caritas num panorama local.

Estadão
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