Sem salão e com alta demanda, ‘dark kitchens’ transformam o mercado de entregas
As cozinhas e lojas “fantasmas” estão remodelando o varejo e o setor de alimentação no Brasil
As dark kitchens — ou “cozinhas fantasmas” — são estabelecimentos que funcionam exclusivamente para preparar refeições destinadas ao delivery. Não há salão, mesas, garçons nem atendimento presencial. Tudo acontece nos bastidores: cozinhas profissionais voltadas à eficiência e à entrega rápida.
Segundo Flávia Waeny, coordenadora do curso de Administração da Faculdade Anhanguera Vila Mariana, “as dark kitchens representam um modelo ágil, econômico e eficiente, focado exclusivamente em delivery, adequado às tendências atuais de consumo pela conveniência e uso intensivo de plataformas digitais”.
O conceito surgiu no Reino Unido, com a empresa Deliveroo, e se espalhou pelo mundo durante a pandemia de Covid-19. No Brasil, consolidou-se a partir de 2020, impulsionado por aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats — e agora também pela Keeta, nova plataforma de entregas no país.
Em paralelo, o varejo digital também adotou um modelo similar: as dark stores, “lojas fantasmas” que funcionam como estoques estrategicamente localizados para agilizar a logística do e-commerce. Ambas seguem a mesma lógica — reduzir custos fixos e maximizar a eficiência operacional.
Dados do Brasil mostram avanço rápido
Um estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que analisou 22.520 restaurantes parceiros do iFood em São Paulo, Campinas e Limeira, identificou que 27,1% foram classificados como dark kitchens — e, na capital paulista, o percentual sobe para 35,4%.
Segundo o Sebrae, no segundo trimestre de 2021, 57,4% das franquias brasileiras já haviam adotado o modelo dark kitchen de alguma forma — dessas, 21,3% operavam com cozinhas próprias e 11,5% estavam em fase de implementação.
Ainda de acordo com o Sebrae, naquele momento, as “ghost kitchens” representavam cerca de 7,2% do faturamento total do setor de alimentação.
Esses números mostram que o fenômeno deixou de ser uma aposta isolada para se tornar uma realidade relevante no mercado brasileiro.
Vantagens para quem empreende
Para os empresários, o apelo é claro. Sem os custos de um salão, aluguel de pontos comerciais caros e equipe de atendimento, o investimento inicial cai drasticamente. Em uma mesma cozinha, é possível operar várias marcas e cardápios diferentes — o que multiplica o potencial de faturamento com a mesma estrutura.
Além disso, o modelo se apoia fortemente em tecnologia: sistemas de gestão de pedidos, algoritmos de previsão de demanda e integração direta com plataformas de entrega. “É uma forma de expansão mais barata e mais ágil, tanto para marcas consolidadas quanto para novos empreendedores”, explica Waeny.
Mas o formato também traz armadilhas. O principal desafio, segundo a especialista, é o controle sanitário. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mantém regras rigorosas para o funcionamento de cozinhas profissionais — e o descumprimento pode levar ao fechamento do negócio.
Outro ponto de atenção é a dependência total das plataformas de entrega, que controlam preços, taxas e a exposição das marcas. Para pequenos empreendedores, essa intermediação pode significar margens menores e dificuldade de fidelizar clientes.
Além disso, o consumidor perde o vínculo presencial com o restaurante — o que reduz a experiência e pode afetar a confiança na qualidade do produto.
E o consumidor?
Para o cliente, o benefício é a conveniência: mais opções, entrega rápida e cardápios variados a poucos cliques. No entanto, a ausência de ponto físico limita a transparência sobre a origem e as condições de preparo dos alimentos.
Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, as prefeituras começaram a discutir formas de fiscalização específicas para as dark kitchens, especialmente nas áreas residenciais onde muitas se instalam para reduzir custos logísticos.
Tendência ou bolha?
A especialista da Anhanguera acredita que o modelo não é passageiro, mas deve evoluir: “Nada é infinito, no sentido de ser eternamente bom, mas também não é possível deixar passar boas oportunidades de negócios. É preciso avaliar e reavaliar constantemente”.
Na prática, o futuro do delivery deve combinar os dois mundos: marcas físicas que expandem por meio de cozinhas virtuais e novos negócios nativos digitais que exploram a eficiência das dark kitchens.
O fenômeno das “lojas fantasmas” aponta para uma transformação estrutural no consumo urbano — onde o contato humano cede espaço à conveniência, e o restaurante, muitas vezes, nem precisa existir aos olhos do cliente.