Preocupações com sotaques são constantes nas novelas
- Márcio Maio
É comum ouvir dos atores que a melhor parte do trabalho de interpretação é a composição dos personagens. Ainda mais quando se trata de algo distante da realidade que o profissional vive, como é o caso de vários exemplos em Passione, da Globo. A trama de Sílvio de Abreu se divide entre núcleos italianos e brasileiros, o que propicia uma intensa mistura entre expressões paulistanas e itálicas. Um trabalho que demanda cuidados que muitas vezes não são confiados apenas aos seus intérpretes. Mesmo quando eles já têm alguma base sobre os sons que devem ser pronunciados em cena. "Comecei a fazer aulas de italiano algumas semanas antes de ser escalado, mas o trabalho com a Cecília Casini foi fundamental. Ela pôde exercitar com a equipe o sotaque que exatamente se usa na Toscana, região da Itália onde se passa a história", argumentou Daniel de Oliveira, o despojado Agnello do folhetim.
Cecília Casini nasceu na própria Toscana, e dá aulas de italiano na USP. Mas, apesar da vivência acadêmica, garante que seu compromisso maior não é ensinar o elenco a "parlar" como nativo. "O trabalho de intervenção linguística em Passione se pauta na avaliação da compreensão do texto por parte do público", jurou. Mas o que se vê no ar são cenas repletas de frases inteiras no idioma, sem tradução, algo bem diferente de outras obras da emissora que abordavam culturas estrangeiras. A mais recente, Caminho das Índias, apostava em expressões isoladas e explicadas em seguida na boca de indianos que se comunicavam em português nas sequências. "Usamos a sensibilidade em tudo, mas a maior preocupação é sempre com a dramaturgia. Cito o exemplo de 'firanghi estrangeira', expressão que caiu na boca do público. Na verdade, 'firanghi' significa estrangeira, ou seja, todo mundo entendia o que se queria dizer ali", explicou Íris Gomes, especialista em prosódia e instrutora de dramaturgia da Globo, que auxiliou o elenco da trama de Glória Perez com a ajuda de consultores indianos.
Apostar em um sotaque carregado é sempre um risco. Essa é a visão de Cláudio Lins, o mocinho Claude de Uma Rosa com Amor, do SBT. Na pele de um francês no remake, o ator não dispensou a ajuda de especialistas da própria emissora, mas preferiu se defender também com aulas particulares, por sua conta. No início, chegou a ser alvo de críticas, mas o resultado hoje é valorizado pela equipe. "Sempre vai ter gente que gosta e gente que não gosta. E tudo que é novo pode causar certo estranhamento no início. Mas a preocupação maior é sempre manter a qualidade e agradar o telespectador", opinou.
Na contramão de quem aprende um sotaque para um papel, estão aqueles que precisam se distanciar de suas origens na hora de emprestar a voz para alguns personagens. Uma tarefa difícil e que, em muitos casos, é obrigatória para uma escalação. "Já atendi muitos atores que me procuraram depois de perder bons trabalhos em função do jeito de falar. Para conseguir evoluir, é preciso ter ouvido fonético. Não pode ficar só articulando palavras, sem sentir o que está sendo dito", analisou Glorinha Beutenmuller, a mais respeitada profissional de prosódia do meio televisivo.
Mesmo assim, alguns atores se saem tão bem nos testes que o talento passa por cima de qualquer regionalismo. Mariana Rios, que se destacou em duas temporadas de Malhação como a espevitada Yasmin, passou por isso. Mineira, a atriz agradou tanto que a última coisa que pesou foi seu sotaque. "Isso virou um traço da personagem. Na época, a seleção foi muito em cima da hora e não daria tempo para trabalharmos uma forma de amenizar. Deu muito certo", lembrou Leila Mendes, que ajuda o elenco do seriado teen em aulas quinzenais. Para ela, carregar nos sotaques na dramaturgia não é algo que deva ser levado tão ao pé da letra. Ainda mais quando isso envolve culturas estrangeiras. "A história tem de ser soberana. Nossas fronteiras são distantes de outras línguas e isso pode afastar o público. O filme Chocolate foi protagonizado por um americano e uma francesa e rodado em inglês. E ninguém duvida que se passa na França", exemplificou Leila.
Questões individuais
Criar um jeito de falar específico para um personagem vai além de sotaques ou idiomas. Nilton Bicudo que o diga. O ator encarna o divertido Afrânio no remake de Uma Rosa com Amor e dispensou a ajuda técnica do SBT na hora de definir como interpretaria o fanho apaixonado pela mocinha Serafina, de Carla Marins. "Comecei no agudo, mas depois vi que funcionava melhor indo para o grave. Achei que tinha de ser estilizado e mais leve", analisou.
Bruno Gagliasso não trabalhou sozinho o seu sotaque em Passione, mas teve preocupações diferentes do resto do elenco da novela. Isso porque o malandro Berilo, seu personagem, já morava no Brasil quando o folhetim estreou. Ou seja, não poderia falar da mesma forma que os personagens que ainda estão na Itália. "Estou suavizando desde o começo. Como ninguém veio falar comigo, acho que está dando certo", deduziu. Bruno, aliás, vive uma fase bem feliz em relação a sotaque. Isso porque o ator tem a oportunidade de rever outro trabalho que demandou uma dedicação especial à prosódia: o caipira Ricardo de Sinhá Moça. "Assisto todos os dias. Revejo, lembro da época, penso em tudo o que foi criado para aquele papel e isso me ajuda na hora de trabalhar em cima do próprio Berilo", explicou.
Instantâneas
# Grazi Massafera foi muito elogiada quando estreou como protagonista em Negócio da China, da Globo. A atriz, que nasceu em Jacarezinho, no Paraná, se livrou do sotaque interiorano para encarnar a carioca Lívia.
# O paulista Rael Barja foi escalado para Malhação em um concurso do Caldeirão do Huck. E, depois de fazer um trabalho para neutralizar seu sotaque, precisou retomá-lo para interpretar o divertido Caju no seriado.
# Várias expressões de Caminho das Índias caíram no gosto popular. Alguns exemplos são "atchá", "are baba", "arebaguandi" e "baguan kelie".
# Em Passione, Cecília Casini arrisca palpites sobre o que pode ser repetido nas ruas pelo público que assiste à novela. Para ela, devem pegar as expressões "punto e basta", "stai fresco", "figurati" e "sono veramente innamorato", entre outras.