'It: Bem-Vindos a Derry' expande universo de King com maestria, mas falha ao diluir assuntos reais
Série expande o universo de Stephen King com coragem e um Bill Skarsgård magistral, mas perde força ao diluir críticas sociais potentes em meio ao espetáculo do horror.
Com o fim da primeira temporada, It: Bem-Vindos a Derry prova que não é apenas um caça-níqueis nostálgico. A produção da HBO Maxentrega uma obra madura, visualmente impactante e que entende profundamente as obras de Stephen King. O saldo final é inegavelmente positivo: a série soube contar a história de Derry e expandir a mitologia sem depender de fan service gratuito. No entanto, em sua busca por equilibrar o horror cósmico com o trauma social dos anos 1960, comete erros que impedem a obra de atingir a perfeição.
O maior deslize da temporada reside em sua ambição temática não totalmente concretizada. A série se propôs a discutir o racismo estrutural da época — uma ferida tão purulenta em Derry quanto o próprio Pennywise. Contudo, a execução carece da contundência vista em obras contemporâneas do gênero, como a antologia Them e o recente filme de Ryan Coogler, Pecadores
O ápice dessa falha narrativa ocorre no episódio focado no incêndio do "Black Spot". O que deveria ser um momento de terror histórico e crítica social devastadora acaba diluído por escolhas de roteiro questionáveis. Ao inserir a morte impactante do personagem Rich exatamente neste momento, a série ofusca a tragédia coletiva do racismo em prol do choque emocional individual. A mensagem perde a potência, e o horror sobrenatural acaba servindo, ironicamente, como uma cortina de fumaça para o horror humano, quando deveriam caminhar de mãos dadas.
Além da temática social, o roteiro tropeça no desenvolvimento de seus heróis. Lilly, apresentada como a suposta protagonista e fio condutor da trama, frequentemente se vê relegada ao segundo plano, ofuscada por subtramas mais robustas e atuações coadjuvantes que roubam a cena. Da mesma forma, o antagonista humano, General Francis Shaw, sofre com uma escrita desleixada; sua justificativa para permanecer em Derry e suas motivações soam muitas vezes como meros dispositivos de roteiro para mover a trama, sem a profundidade orgânica que a série exige.
Tecnicamente, a série também enfrentou uma curva de aprendizado visível. Os primeiros episódios apresentaram um CGI oscilante, que por vezes quebrava a imersão da atmosfera anos 60. Felizmente, a qualidade dos efeitos visuais evoluiu drasticamente ao longo da temporada, culminando em transfigurações aterrorizantes nos episódios finais que honram a natureza grotesca da Coisa.
Se há tropeços, há também acertos magistrais. A grande joia da coroa de Bem-Vindos a Derry não é apenas o monstro, mas a expansão de Dick Hallorann. Chris Chalk entrega uma performance hipnótica, construindo a "origem" do icônico personagem de O Iluminado com uma densidade dramática que rivaliza com os protagonistas do cinema. Hallorann é o coração moral e místico da série, e o roteiro acerta precisamente ao dar a ele o destaque merecido.
E, claro, há Bill Skarsgård. O ator não apenas retorna; ele eleva o material. Mesmo com tempo de tela dosado, sua presença é onipresente. Skarsgård transforma Pennywise em uma força da natureza, uma entidade que transcende o "monstro da semana". A série é corajosa ao não depender dele o tempo todo, mas quando ele aparece, a tela gela.
It: Bem-Vindos a Derry é uma série de extremos. É visceral e corajosa, pois não tem medo de matar personagens carismáticos ou crianças, subvertendo a segurança que o público costuma sentir em prequelas. Seus personagens são cativantes e a atmosfera é envolvente, apesar de um roteiro que nem sempre é inteligente.
Ao final, a série da HBO é um banquete para os fãs de Stephen King: recheada de referências orgânicas e expandindo o cânone com respeito. Se tivesse calibrado melhor a mão em suas críticas sociais e equilibrado o protagonismo, seria uma obra-prima irretocável. Do jeito que está, é um excelente horror que, mesmo com seus arranhões, deixa um gosto de "quero mais" e a certeza de que Derry ainda tem muitos segredos a sangrar.