É Tudo Verdade: Terra entrevista diretores de 'Uma Noite em 67'
O cenário político era desastroso. A plateia vivenciava o nascimento de um novo movimento musical, sem entender, no entanto - pelo menos a grande maioria -, o tom de protesto implícito nas entrelinhas de
Domingo no Parque, cantado por Gilberto Gil ao lado dos Mutantes no festival realizado em 21 de outubro de 1967 e transmitido, nacionalmente, pela Rede Record. Os universitários de esquerda rechaçaram Gil. A atitude roqueira dos Mutantes era uma afronta, um agressivo "viva" ao imperialismo americano. Mas foi o grande público que aprovou esse novo som, marcando história. Três meses antes, Gil participara de um protesto contra a guitarra elétrica - a mesma usada em
Domingo no Parque- em São Paulo ao lado de personalidades como Elis Regina e Jair Rodrigues, que defendiam uma MPB de raiz. Tal momento - bem como sua repercussão - é retratado em
Uma Noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, que abre o festival É Tudo Verdade, em São Paulo.
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Gil não é o epicentro desse longo trabalho de pesquisa iniciado em 2005. Os grandes finalistas do festival, Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Carlos, o próprio Gil, Edu Lobo e Sérgio Ricardo contam, de forma íntima, como definiram os diretores, sobre o festival que, sem meias palavras, mudou os rumos da música brasileira e foi o pontapé inicial do Tropicalismo, movimento que dispensa comentários.
Para ter acesso a uma série de imagens raras de arquivo - o YouTube deve estar morrendo de inveja -, foi preciso que Terra e Calil, bem como a produtora Videofilmes, fechassem uma parceria com a Record Entretenimento, braço da Rede Record. A partir daí, Uma Noite em 67 se formou e pôde, finalmente, vir a público. Em conversa com a reportagem do Terra por telefone, Ricardo e Renato contaram um pouco mais sobre a produção e as dificuldades de todo o processo de criação:
Desde quando o projeto está na mão de vocês?
Renato - Estudei sobre os festivais e desde a época da faculdade tento fazer um documentário. Durante a faculdade, o projeto não deu certo. Em 2005, começamos a tentar levar isso para um produtor transformá-lo no filme. Marcamos então uma conversa com João Moreira Salles e no dia seguinte ele já estava defendendo a ideia. Foi ele quem abriu as portas para a gente. Depois, entramos na produtora Videofilmes.
Por que a Record Entretenimento entrou no bolo e fez parceria com a Videofilmes?
Renato - Tínhamos o entendimento de que era necessário termos acesso a todas as imagens de arquivo do festival. Então, marcamos uma reunião com a Record e depois a Record Entretenimento fechou a parceria. Conseguimos acesso integral às fitas do festival.
Acredito que o Festival de 67 deva guardar uma série de imagens de bastidores ainda não mostradas, pelo menos para essa geração que veio depois. Que tipo de surpresa nos aguarda?
Ricardo - As imagens do festival de 1967 circulam de tempos em tempos. Muitas delas foram pouco vistas. Acho que a única imagem realmente inédita mostra uma passeata contra a guitarra elétrica que ocorreu três meses antes do festival. Gilberto Gil estava lá com Elis Regina e Jair Rodrigues. Três meses depois ele se apresentaria no festival tocando Domingo no Parque, com auxílio de uma guitarra elétrica. Achamos legal mostrar essa contradição do Gil. Esse momento é muito importante. É a ruptura do que tinha acontecido até então. Eu e o Renato nunca tínhamos visto isso.
Renato - Temos outras imagens fantásticas muito pouco vistas. Entrevistas do Chico Buarque, do Caetano, do Roberto Carlos. Cada um tinha 20 e poucos anos. A TV estava embrionária no Brasil. Esses vídeos permanecem raros.
Imagino que muita coisa deva ter ficado fora na edição. O filme está com quanto tempo de duração?
Renato - São 85 minutos. O processo de edição foi prazeroso, mas ao mesmo tempo muito difícil. Originalmente, queríamos fazer um filme que falasse essencialmente sobre o Festival de 1967. Antes, durante e depois. Mas com a limitação, decidimos deixar todas as eliminatórias de fora. A final tinha 12 músicas. A gente foi cortando uma por uma até chegar em seis. Seis músicas, seis personagens principais: Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Caetano Veloso e Sérgio Ricardo.
Voltando ao Gil, o que ele falou a respeito dessa passeata, quase 43 anos depois?
Ricardo - A gente teve muita sorte de ter depoimentos gentis. O Gil ficou muito íntimo quando falou do sentimento que tinha em relação a isso. Deixou claro que tinha muita coisa acontecendo, mas acabou indo. Ele se sentia comprometido com uma série de colegas, a começar por Elis Regina, que fazia parte do movimento de uma música mais tradicional (nota: Elis sentia-se ameaçada pelo sucesso da Jovem Guarda, representada por, entre outros, Roberto Carlos. A audiência de seu programa na TV Record, Fino da Bossa, que permaneceu no ar até 1967, começava a cair gradativamente) Gil tinha um sentimento de lealdade por ela, embora na época não acreditasse profundamente naquilo.
Como vocês avaliam esse cenário atual da música? Por que os festivais não revelam mais artistas como aqueles? Tem a ver com o momento político de hoje?
Renato - Aqueles eventos da década de 1960 têm uma conjuntura política que fazia com que aquelas pessoas usassem a música como válvula de escape contra a repressão. Era uma geração iluminadíssima. Eles vinham aos festivais e tinham realmente chance de se projetar. O público se relacionava com a música de uma maneira muito diferente com que se relaciona hoje. Não acho que tudo está perdido, mas se fossem rolar novos festivais, eles poderiam ter uma estrutura diferente.
Ricardo - É importante dizer que o filme tenta evitar a todo custo o tom nostálgico. A música brasileira não veio ladeira abaixo depois daquele momento. Artistas surgem o tempo todo, como naquela época. Mas existia essa conjuntura da TV ser o centro das coisas. Quem queria ouvir música boa, tinha que usar a TV. A grade da Record era dominada por música. Era muito mais fácil projetar esses artistas e projetar o público.