'Faço um axé político. Não tem jeito', diz Daniela Mercury que lança disco
Cantora celebra 60 anos de vida e 40 do axé music com 'Cirandaia', no qual convida o público a seguir mais alegre, mas sem desviar das lutas
Daniela Mercury lembra da resposta que um pacifista lhe deu certa vez, no México, quando ela o questionou sobre o que fazer para pacificar o mundo: "Aceitando o outro como ele é, porque não temos poder sobre ele. E fazendo o que é possível", teria dito o pacato interlocutor.
"Eu venho tentando fazer isso. Às vezes, passo do limite", admite Daniela. "Vou fazendo música, música, música, para ver se ela encanta as pessoas e faz o papel sociocultural para seguirmos mais alegres e mais fortes, juntos", diz a cantora, avisando que é filha de assistente social [Liliana Mercuri, de 87 anos]. "Esse sempre foi o papo lá em casa", completa.
Com o novo álbum, Cirandaia, que acaba de lançar, Daniela quer puxar mais gente para uma ciranda "de propostas de igualdade", como ela diz, em um disco que classifica como "afetivo, espontâneo e muito brasileiro". São 12 músicas inéditas, em um trabalho em que a cantora coloca o pé no freio em experimentações com a música eletrônica, por exemplo.
Faz, assim, em álbum que produziu juntamente com Juliano Valle, algo mais acústico em quase sua totalidade. Aproxima-se mais de seu começo de carreira, quando transitava entre o axé e a MPB - Daniela se define como uma cantora de "música brasileira de tambor".
"Lembro que João Gilberto me disse que eu era da família dele. Eu disse a ele: 'Mas eu botei foi instrumento, não foi? Você tirou um monte, eu botei um bocado'", conta. A cantora explica a batucada: "Quero que, de alguma forma, fazer uma música que minha cidade [Salvador] possa absorver", diz.
O batuque está presente logo na primeira faixa de Cirandaia, ...Axé Salvador, na qual ela chamou grandes nomes do carnaval de rua de Salvador, como Tonho Matéria, Cortejo Afro, Banda Didá, Filhos de Gandhy, Ilê Aiyê e Muzenza. A canção, que tem letra que remete às orixás e à beleza da festa de rua, também tem acompanhamento de orquestra.
Na faixa seguinte, o galope É Terreiro, tem participação de Alcione e é dedicada a Maria Padilha, entidade cultuada pela umbanda. Daniela dá, com a canção, um passo na pacificação da intolerância religiosa. Maria Padilha e outras entidades têm aparecido mais frequentemente na música brasileira - Maria Bethânia, em seu novo show, reverencia Zé Pilintra -, e nos desfiles de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Daniela mesmo teve que aprender quem era a entidade e, praticante de candomblé, 'pedir permissão' para falar dela. "Todo mundo que é sério no candomblé sabe que música popular não tem nada a ver com religião, né? Sim. Arte é arte, religião é religião", diz.
Antes de decidir por gravar a canção, foi pesquisar. Afirma que se deparou com uma figura interessante, emancipadora e de liberdade sexual. "É algo como Rita Lee, Dercy Gonçalves, Simone de Beauvoir, Luz del Fuego... Comecei a ver que há um movimento afirmativo dessas entidades que foram invisibilizadas, porque foram consideradas do mal", diz.
De formação católica, a cantora conta uma história interessante: acompanhada pelos publicitários Nizan Guanaes e Sérgio Valente, seus colegas de adolescência, compunha músicas para cantar na igreja. Uma delas [Daniela cantarola] feita por Guanaes, chamada Deixa Deus Dançar, diz: 'Louvai ao Senhor ao som do tambor'.
"Misturar também é da cultura de uma cidade religiosa. Os ritmos dos terreiros estão imbricados na música popular brasileira, desde o samba de roda em tudo. Todo baiano acaba tendo, mesmo que escondido, um orixá", diz.
Daniela puxou mais gente para sua ciranda. Trouxe Dona Onete que escreveu o banzeiro Cute Love Baby, e participa do álbum. Uma mensagem de esperança, representada por uma criança. Com Zélia Duncan, gravou a romântica Antes de Você Chegar, composição de Almério e Ceumar Coelho.
"Não sou romântica. Sou uma baiana mais rígida mesmo", diz Daniela. "Se eu componho uma canção de amor, é porque a relação está terminando. Nunca fui de me derreter assim, mas, quando os outros se derretem, eu canto com felicidade".
Daniela também traz Geraldo Azevedo, que completou 80 anos. Quis reverenciar o compositor pernambucano. A canção, Bicho Amor, é parceria dele com Capinan - coautor de clássicos como Ponteio, Corrida de Jangada e Soy Louco Por Ti, América. Chico César, que Daniela conheceu no início dos anos 1990, quando gravou e fez sucesso com À Primeira Vista, contribuiu com Deus Tem Mais Ocupação.
Em parceria com Juliano Valle, Daniela escreveu Meu Corpo Treme, uma aparente declaração de amor - mas, lembrem-se, Daniela só compõe canções de amor quando uma relação já está com os dias contados - e ela está muito bem, diz, com sua mulher, Malu Verçosa, com quem está casada há mais de dez anos. O derramamento da letra é, na verdade, para... a música. "Meu corpo treme de paixão", diz a letra, gravada em ritmo de pagodão baiano, com a participação de Rachel Reis.
Daniela admite estar mais "leve e alegre", com a chegada dos 60 anos, completados em julho deste ano. Isso, no entanto, não a impede de lutar pelo o que acredita - e de expor suas opiniões, mesmo que isso lhe custe dissabores, como os ataques que recebe, oriundos, sobretudo, das redes sociais. A cantora afirma já ter recebido, inclusive, ameaças de morte. "Foram várias vezes. Isso me preocupa, claro. São sinais de violência bastante inaceitáveis", diz.
A cantora diz que seus agressores costumam agir de forma mais ostensiva durante as campanhas eleitorais. "Esses ataques ocorrem especificamente quando nós artistas estamos lutando contra alguma coisa para interesse da maioria da população mais pobre ou que a gente acha que é importante para a população em geral", diz Daniela, que defende a regulação das redes sociais e do controle que as big techs exercem sobre elas.
Sobre os haters, ela diz que é preciso ter "paciência" com eles e ensiná-los a distinguir a verdade da mentira. "Eles são manipulados. Na internet, todo mundo acha que sabe de tudo, todo mundo fala sobre tudo", afirma. Daniela também se diz cansada do exagero de informações. Ela defende um tempo para respirar um pouco.
Daniela se mostra uma pessoa aberta à pluralidade de opiniões. Emocionada, fala da conexão que estabeleceu com a cantora sertaneja Launa Prado. Recentemente, Daniela saiu em defesa de Lauana que sofreu ataques homofóbicos ao postar uma foto com sua noiva, Tati Dias - anos atrás, a cantora já havia convidado a sertaneja para cantar em seu trio.
"Que bom ter alguém dessa nova geração de sertanejos por perto - e eu sou amiga de vários outros, mesmo não compactuando com a visão política de muitos deles", diz.
Embora o papo na entrevista volte a ser a música e o novo álbum da cantora, Cirandaia, Daniela não consegue dissociá-los de suas lutas, como a pelo meio ambiente.
"Faço um axé político, não tem jeito. É mais forte do que eu. Está tudo certo. É isso o que eu sou. Não dá para ser outra pessoa. Precisamos ser diferentes dentro do nosso universo [o axé]".