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O que podemos aprender com os povos mais isolados do mundo, como a tribo que matou o americano John Chau

Especialista analisa que, em vez de demonizar esses povos, todos poderíamos aprender algo com eles.

29 nov 2018 - 10h01
(atualizado às 10h12)
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Integrante da tribo Jawara, que vive nas proximidades da ilha onde o americano John Allen Chau foi morto
Integrante da tribo Jawara, que vive nas proximidades da ilha onde o americano John Allen Chau foi morto
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A morte do americano John Allen Chau, recebido a flechadas por uma tribo aborígene em risco de extinção no arquipélago indiano de Andaman e Nicobar, no Oceano Índico, tem despertado interesse sobre como vivem alguns dos povos mais isolados do mundo. Os membros da chamada tribo Sentinela, que teriam matado o americano com flechadas, vivem isolados há quase 60 mil anos. Como eles não têm imunidade para doenças comuns, como gripe e sarampo, o contato com visitantes é proibido para proteger sua integridade física e preservar seu estilo de vida.

De acordo com relatos de pescadores da região, o americano foi assassinado ao desembarcar na ilha Sentinela do Norte, onde eles vivem e onde a presença de visitantes é proibida. Após ser atacado, seu corpo teria sido abandonado na praia.

Informações apresentadas à imprensa apontam que Chau - que tinha 27 anos - teria subornado pescadores para que o transportassem até o local. De acordo com anotações que deixou antes de sair e que foram divulgadas pela imprensa local, ele queria contatar a tribo para divulgar o cristianismo. Autoridades indianas tentam resgatar o corpo.

A Survival International, organização não-governamental com sede em Londres que defende povos indígenas ao redor do mundo, aponta que o assassinato do americano deveria ser um lembrete de que tribos isoladas devem permanecer protegidas.

Lições

Protegidas, mas não "demonizadas", segundo os especialistas.

Um antropólogo entrevistado pela BBC News disse que há o risco de a morte do americano criar a impressão de que todos esses povos são "cruéis, brutos e violentos", e de fazer com que outros aspectos deixem de ser considerados.

Em vez de demonizar esses povos, todos poderíamos aprender algo com eles, diz o antropólogo. Ele argumenta que princípios e filosofias que seguem podem revelar algumas lições para o "mundo desenvolvido".

A seguir, ele apresenta algumas dessas lições:

Os Piaroa não têm senso de propriedade ou competição. São como uma "sociedade de iguais"
Os Piaroa não têm senso de propriedade ou competição. São como uma "sociedade de iguais"
Foto: AFP / BBC News Brasil

Paz e igualdade como lema

O povo Piaroa, com mais de 14 mil habitantes, vive perto do rio Orinoco, no Estado de Amazonas, na Venezuela.

Eles vivem em completa igualdade e de forma pacífica.

Um dos segredos, segundo o especialista, é a ausência de qualquer forma de governo, lideranças ou hierarquias.

Vivem como em uma 'sociedade de iguais' em que existe apenas o indivíduo e sua vontade de fazer o que quer.

Os Piaroa também rejeitam a violência e não castigam fisicamente as crianças da comunidade.

Eles consideram que a paz é alcançada eliminando-se ideias como propriedade, competição, vaidade e ganância. Nesse contexto, ninguém da tribo pratica esportes nem é dono, por exemplo, de um pedaço de terra.

Um estímulo que existe é para as pessoas aprenderem umas com as outras, independente de serem ou não idosas.

Para eles, a ideia do indivíduo é fundamental e isso não tem a ver com estimular o egoísmo. Cada indivíduo, acreditam, deve escolher o que fazer e como. E as decisões dos outros não são julgadas.

Em um ensaio acadêmico de 1989, a professora norte-americana Joanna Overing escreve:

"Os Piaroa expressam diariamente o direito de escolher de forma individual e o direito de serem livres em uma ampla variedade de assuntos: residência, trabalho, desenvolvimento pessoal e até o casamento".

Homens e mulheres compartilham o mesmo status entre os Piaroa
Homens e mulheres compartilham o mesmo status entre os Piaroa
Foto: AFP / BBC News Brasil

Pelo fato de ser uma sociedade de iguais, homens e mulheres compartilham o mesmo status.

"Cada mulher é dona da sua própria fertilidade, da qual só ela é responsável: a comunidade não tem nenhum direito legal sobre seus filhos, nem seu marido, se eles se separarem", diz Overing em seu texto.

O valor do que é diferente

Os Bayaka são uma tribo de caçadores-coletores que vive nas florestas tropicais da África Central.

Para eles, a música é uma parte central de sua identidade e os especialistas acreditam que o modo como desfrutam dela também condiciona seu comportamento.

"As músicas que os Bayaka cantam são polifonias densas e isso significa que cada membro vai cantar uma melodia diferente, combinando-a para criar uma canção", diz Jerome Lewis, antropólogo que estuda a tribo há mais de duas décadas.

O jeito de cada pessoa cantar sua própria melodia, explica Lewis, reflete a grande importância que os Bayaka dão ao indivíduo. Eles também não têm líderes.

"Eles te ensinam a ser diferente e esta sociedade valoriza muito a autonomia", diz ele.

"Uma vez que as crianças começam a andar, elas são livres para decidir onde dormem e com quem se relacionam. Você não tem o direito de pedir a alguém que faça qualquer coisa por você", observa Lewis.

Mas uma vez que há líderes e todos são livres para fazer o que querem, como os Bayaka aprendem a trabalhar juntos?

A resposta está, mais uma vez, na música.

A música é uma das marcas da tribo Bayaka
A música é uma das marcas da tribo Bayaka
Foto: Gill Conquest / Jerome Lewis / BBC News Brasil

"Através do seu canto, eles aprendem o jeito de coordenar sua vida cotidiana", diz o antropólogo.

"Você tem que manter sua própria melodia enquanto outras pessoas cantam outras diferentes", observa ele.

"Para cooperar e ser eficazes juntos, é preciso fazer algo diferente. Esta é uma autonomia em que as pessoas são muito conscientes das necessidades dos outros e do seu direito de serem diferentes".

Proteção contra doenças

Os Yanomami são uma tribo indígena que vive nas florestas tropicais do norte do Brasil e do sul da Venezuela e que pode ajudar a entender melhor nosso próprio corpo.

Pesquisas sobre a tribo, que permaneceu isolada do mundo exterior até pelo menos 1950, forneceram novos insights sobre como a vida moderna pode estar mudando a composição do corpo humano.

Um estudo de 2015 examinou uma série de integrantes da tribo e revelou a mais diversa coleção de bactérias já encontradas em pessoas, incluindo algumas que nunca haviam sido detectadas em seres humanos, de acordo com os cientistas.

Para eles, a conclusão foi que as dietas modernas, os antibióticos e a higiene podem reduzir a variedade de bactérias em nosso corpo.

Criança yanomami no Amazonas: Estudo realizado na tribo trouxe insights sobre como a vida moderna pode estar mudando a composição do corpo humano
Criança yanomami no Amazonas: Estudo realizado na tribo trouxe insights sobre como a vida moderna pode estar mudando a composição do corpo humano
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Talvez até mesmo uma exposição mínima a hábitos modernos (...) possa resultar em uma drástica perda da diversidade bacteriana", disse um dos autores do estudo, José Clemente, ao jornal Toronto Star.

"A cada passo dado em direção à ocidentalização, parece que estamos perdendo a diversidade".

O estudo também contribuiu para uma maior compreensão sobre a resistência aos antibióticos.

Durante anos, profissionais da área médica têm alertado que o uso excessivo de antibióticos torna as infecções mais difíceis de tratar, criando superbactérias resistentes aos próprios medicamentos que visam matá-las.

O estudo descobriu que os Yanomami tinham genes únicos resistentes aos antibióticos, apesar de nunca terem tomado os medicamentos.

Foi mais uma prova de que as bactérias em nosso corpo podem resistir ao tratamento mesmo antes de terem sido expostos aos antibióticos.

Des-pa-cito…

Mark Plotkin passou 35 anos estudando como tribos remotas por todo o Amazonas usam as plantas com fins medicinais e, segundo ele, elas também poderiam nos ensinar que uma vida mais desacelerada pode ser uma vida mais feliz.

"As pessoas dessas tribos remotas não sofrem de estresse, doenças cardíacas, de insônia e passam mais tempo com suas famílias", diz o pesquisador.

O pesquisador Mark Plotkin com um membro da tribo Sikiy, na fronteira do Brasil com o Suriname
O pesquisador Mark Plotkin com um membro da tribo Sikiy, na fronteira do Brasil com o Suriname
Foto: Mark Plotkin / BBC News Brasil

"Pode ser que não estejamos prontos para desistir de nossos iPhones e iPads e comer comida tailandesa de vez em quando, mas as lições são claras: desacelere, não perca tempo se preocupando com coisas sobre as quais você já não pode fazer nada. Eu mesmo tento viver minha vida seguindo estas recomendações", comentou ele.

Plotkin, que lidera o grupo de defesa da Equipe de Conservação do Amazonas, pondera, no entanto, que embora os países desenvolvidos possam aprender muito com estilos de vida mais simples, é preciso ter cautela.

"Não é necessário romantizar a ideia de como essas tribos remotas vivem, mas sim aprender com elas. Assim como há coisas boas que podem ser aprendidas na religião ocidental", diz ele e acrescenta:

"Assim como não devemos superestimar os indígenas, não devemos demonizar missionários como John Allen Chau."

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