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Pesquisa mostra como está a saúde mental nas favelas do Rio

Levantamento que ouviu mais 600 pessoas em cinco comunidades aponta que 52% dos entrevistados sofreram com ansiedade durante a pandemia

21 mar 2022 - 14h45
(atualizado às 15h36)
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pesquisa saúde na favela
pesquisa saúde na favela
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Uma pesquisa feita com mais de 600 moradores de cinco favelas do Rio de Janeiro mostra as condições de saúde mental da população das comunidades durante a pandemia. Segundo o levantamento “Saúde Mental na Periferia, Como Vamos?”, 52% dos entrevistados disseram que sofreram com ansiedade durante a pandemia.

O estudo ainda indica que 80% das pessoas que trabalhavam antes da pandemia seguiram as rotinas no serviço mesmo após as regras de combate ao coronavírus.

Ainda conforme a pesquisa, 45% registraram que as pessoas da casa que estavam trabalhando e que foram contaminadas pelo coronavírus não foram afastadas adequadamente do trabalho. Isso explicaria o fato de 55% dos entrevistados afirmarem ter perdido algum familiar ou pessoa próxima para o vírus.

Foto: ANF

O que é a pesquisa

Diante da situação em que toda a sociedade brasileira estava vivendo com a chegada da pandemia provocada pela covid-19, a população que mais sofreu em todas as esferas foram os moradores de favelas. Foram eles que durante o isolamento social ficaram sem trabalho ou tiveram que ir à luta correndo risco de contaminação, crianças sem escola - local onde a maioria faz a sua principal refeição do dia.

Diante deste quadro, a ANF (Agência de Notícias das Favelas) resolveu implementar o projeto "Saúde Mental na Periferia, Como Vamos?", idealizado pelo seu fundador André Fernandes e aprovado pela Chamada Pública de Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

O projeto contou com um eixo principal focado nos atendimentos psicoterapêuticos para mulheres vulneráveis. E de maneira complementar, realizou uma pesquisa homônima com o intuito de mostrar o quanto eram altos os índices de pessoas com alguma questão de saúde mental causada ou agravada pelo isolamento social. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram utilizados instrumentos metodológicos quantitativos, envolvendo questionário padrão único - com perguntas abertas e fechadas - e pesquisa de campo presencial.

No levantamento, aspectos como trabalho, renda e endividamento dos moradores das favelas cariocas durante a pandemia, assim como a suspensão das aulas presenciais, a segurança e violência na comunidade, e mesmo dentro de casa, do mesmo modo que o acesso aos serviços públicos de saúde em contexto da contaminação do novo coronavírus, mostraram ser fatores determinantes para um provável comprometimento da saúde mental dessa população.

Os resultados da pesquisa apresentam, portanto, dados capazes de contribuir com a formulação de políticas públicas, voltadas para o atendimento à saúde mental de moradores das favelas cariocas. Além de incentivar a criação e o fortalecimento de redes de apoio local que viabilizem a implementação e efetivação de ferramentas de controle social por parte da própria comunidade.

Ao longo das entrevistas de campo, realizadas presencialmente, a equipe passou por vários desafios, exigindo ajustes necessários para a continuidade da pesquisa. Carmen Valdez, coordenadora geral da pesquisa, explica os principais deles: “Primeiramente, lidar com a violência local, exercida pelo poder do tráfico de drogas, milícias e mesmo pelas ações da Polícia Militar, muitas vezes acaba por colocar em suspenso o cronograma da pesquisa. Exigindo que ajustes sejam feitos para continuidade e finalização dos trabalhos de campo. E, em segundo lugar, a resistência por parte dos próprios participantes que, por vezes, recebem a equipe de campo com olhar desconfiado, preocupado e desacreditado. Fruto, obviamente, de um histórico marcado pelo descaso, desinteresse e mesmo uso político da própria população."

Superados esses desafios, a pesquisa foi concluída com a participação de 679 moradores, vindos da Cidade de Deus, Mangueira, Pavão-Pavãozinho, Providência e Santa Marta, respeitando a amostragem padrão, tendo 95% de confiabilidade e 4% de margem de erro.

Conhecendo o público da pesquisa

A pesquisa contou com a presença predominante de mulheres, correspondendo a 63% do total de pessoas participantes, enquanto os homens somaram 36,1%, cabendo a 0,9% dos entrevistados a autodeclaração não enquadrada no sistema binário. A maioria dos entrevistados se autodeclararam pretos, com 46%. 33% disseram ser pessoas pardas, e 14% brancas. Eram moradores de favelas, em sua maioria, há mais de 20 anos e houve participação predominante de jovens de 18 a 29 anos.

Buscando traçar um panorama sobre trabalho, renda, educação e segurança, o mapeamento identificou que 28,1% dos participantes não estavam trabalhando antes da pandemia. Um percentual acima da taxa de desocupação brasileira que, em fevereiro de 2020 (mês que antecede o início da pandemia no Brasil) era de 11,8% de acordo com o IPEA.

E já num contexto de pandemia, 21,6% continuaram sem trabalho e 19,6% perderam trabalho. Desses últimos, 5,3% começaram a fazer bicos e 7,1% conseguiram se reposicionar em outro trabalho.

Perguntados sobre a situação atual, especialmente a partir de julho de 2021, 29,3% disseram estar sem emprego, dependendo de bicos e ajudas eventuais. Um cenário que supera as estatísticas nacionais sobre desemprego, sendo maior que o dobro para a população economicamente ativa moradora das favelas.

Foto: ANF

Quando abordada a condição da renda auferida durante a pandemia, por aqueles que exerciam alguma natureza de trabalho, se comparada ao que recebiam em período anterior, 48,4% alegaram que ficou menor que antes, 41,2% indicaram que ficou a mesma coisa e 5,8% disseram ter ficado maior que antes. 2,5% não souberam ou preferiram não falar sobre o assunto e 2,1% responderam de outras formas que não permitiram evidenciar a comparação.

Perguntados sobre se seguiram trabalhando fora de casa, mesmo diante dos decretos de distanciamento social, a pesquisa mostrou que 47,6% dos entrevistados alegaram que todas as pessoas da casa que trabalhavam fora de casa seguiram trabalhando durante a pandemia. Soma-se a este percentual os 37,2% que também alegaram que ao menos uma pessoa da casa continuou trabalhando regularmente. Apenas 10,8% registraram que foi possível permanecer em casa durante a pandemia e 4,4% preferiram não falar a esse respeito.

Foto: ANF

Lerrânia Lima, coordenadora geral do projeto, conta suas impressões sobre os resultados da pesquisa, "como 46% não conseguiram manter a regularidade nos estudos, isso indica a falta de preparo do ensino público para manter as pessoas nas escolas. E não tenho dúvidas de que muitos tiveram que parar a escola para conseguir algum bico para ajudar financeiramente em casa. A pesquisa trouxe o resultado de como as pessoas sofrem por outros fatores que acontecem em seus territórios, ou pelo preconceito, falta de trabalho," garante.

Saúde Mental na Periferia, Como Vamos?

O tema da saúde mental nem sempre foi tratado de maneira adequada/ correta nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos. Na verdade, nunca foi central ou prioritário. E esta pesquisa demonstrou que a grande maioria dos participantes nunca foi assistido por profissionais da área ou mesmo souberam dizer o que é tratamento em saúde mental. De acordo com a coordenadora Carmen Valdez, “ao constatar que a pandemia gerou agravamento das vulnerabilidades sociais e econômicas dos moradores das favelas, inevitavelmente estamos a considerar que este impacto também comprometeu a saúde mental dos mesmos. Exigindo ações e políticas estruturantes e coordenadas por parte do poder público, em suas três esferas e em suas diversas áreas de atendimento à população, não se limitando à saúde: educação, trabalho e renda, transporte e mobilidade urbana, seguridade social”.

Quando questionados sobre terem sido contaminados pelo novo coronavírus, cerca de 52% disseram que não, ao passo que 32% confirmaram a contaminação. E um percentual significativo alegou não saber se foi contaminado ou preferiram não dizer (16%). Para Valdez os resultados comprovam a falta de atenção por parte do poder público e dos empregadores em relação à grande massa trabalhadora no período pandêmico. "Quando perguntados sobre se seguiram trabalhando fora de casa, mesmo diante dos decretos de distanciamento social, mais de 80% dos moradores que mantinham alguma natureza de trabalho seguiram em seu ofício durante a pandemia. E, neste cenário, cerca de 45% registraram que as pessoas da casa que estavam trabalhando e que foram contaminadas pelo coronavírus não foram afastadas adequadamente do trabalho. O que também explica o fato de que quase 55% dos participantes perderam algum familiar ou pessoa próxima da família para a covid-19", explica.

Com a chegada do coronavírus, o luto fez parte da vida de muitas pessoas. Por isso, no estudo produzido pela ANF este foi um ponto de questionamento. Os dados revelados na pesquisa sobre falecimento em decorrência do coronavírus, de pessoas moradoras da mesma casa ou pessoas próximas do convívio, demonstraram que mais de 50% dos participantes vivenciaram a perda de alguém próximo.

Ainda vale destacar os dados relativos à situações adversas em seu cotidiano, iniciadas ou agravadas pela pandemia. A preocupação em ter dinheiro suficiente para sustentar a família (70%) mais se evidencia. Cabe destaque para ansiedade (52%), nervosismo (41,2%), tristeza (40,9%) entre outras como expõe a seguinte tabela.

Foto: ANF

Quando perguntados se sabiam da existência de profissionais da saúde que pudessem atendê-los sobre estes aspectos ligados à sua saúde mental, 79,6% alegaram saber dessa possibilidade. Deles, 46,4% nunca procuraram mesmo sabendo da existência desses profissionais, 15,6% já tinham recebido algum tipo de ajuda neste sentido, 10,6% registraram não ter dinheiro para pagar por esses profissionais e 6,9% disseram ter procurado mas sem o recebimento do apoio. Somam-se os 14,8% que consideraram não saber ou preferiram não falar a respeito e os 5,6% que julgaram não conhecer e não acreditar na possibilidade desses profissionais resolverem problemas dessa natureza.

Ainda sobre este cenário de acesso aos profissionais da saúde mental, 74% dos participantes alegaram não terem recebido qualquer suporte à sua saúde mental (seja de assistentes sociais ou psicólogos) durante a pandemia. E somente 12% tiveram acesso a algum tipo de atendimento, predominantemente, em situação de perda familiar. Os demais entrevistados registraram não saber se houve atendimento de algum morador da mesma casa ou preferiram não falar sobre o assunto, configurando 11,8% deles.

Foto: ANF

Como estratégia, a pesquisa concedeu espaço livre nas entrevistas para reflexões sobre a vida, a realidade dos entrevistados e os impactos da pandemia. Não faltaram considerações a respeito da necessidade de melhoria do atendimento na rede SUS, do desemprego, fome e/ou poder de compra do favelado, violência policial e, frequentemente, sobre a ausência de políticas públicas (assistenciais e de segurança). Um dos participantes disse: “Sinto que a culpa dessas questões não são da pandemia, ela apenas agravou problemas já existentes.” Já outro entrevistado revela: “A comunidade não faz ideia do que é poder cuidar da cabeça, isso é luxo para fora daqui."

Richarlls Martins, pesquisador e coordenador executivo do Plano Fiocruz de Enfrentamento à COVID19 nas Favelas do Rio de Janeiro, instituição que patrocinou o estudo "Saúde Mental na Periferia, Como Vamos?”. Por ter tido contato direto com com os projetos apoiados no edital público, ele garante o que a pesquisa realizada pela Agência de Notícias das Favelas trouxe de benefícios para a população das favelas, "aponta para mim um dado muito significativo de como a pandemia afetou diretamente o campo associado ao sofrimento psíquico que é a saúde mental dos moradores e moradoras de favelas.”

E complementa: "é muito interessante perceber e ter a comprovação a partir dos relatos e dos dados qualitativos trazidos pela pesquisa da ANF nos ajuda a pensar estratégias que associam uma integralidade no campo da saúde. Isso nos ajuda a pensar porque moradores e moradoras de favelas são alvos diretamente de uma estrutura que possibilita agravos no campo da saúde mental. Nesse sentido, é interessante também ter uma reflexão mais qualitativa sobre quais são as estratégias de proteção comunitária no campo da saúde que a sociedade tem buscado no que tange especialmente a pauta dos direitos humanos de moradores e moradoras de favelas."

De acordo com Carmen Valdez, “os dados estão postos para mostrar onde estão e como vivem essas pessoas que insistem em se reinventar a cada dia e a minimizar de maneira recorrente as mazelas que se impõem à sua vida. Assumindo, por vezes, atitudes de autoflagelação, culpabilidade em contexto meritocrático e salvaguarda religiosa capazes de justificar, conformar e apaziguar desigualdades e injustiças que são estruturais. Estruturais, inclusive, na capacidade de fazer com que essas pessoas superem continuamente a desordem material cotidiana sem considerar que a instabilidade e o desequilíbrio emocional estão ali também como parte desse mesmo processo.”

São condicionantes da saúde mental que seguem presentes, ativas e definidoras das relações e perspectivas de vida dessa população. E ainda que nesse contexto não seja possível desesperançar, é também necessário subverter essa lógica que, de tão desumana, segue sendo, inacreditavelmente, aceitável.

“No futuro a pesquisa pretende continuar falando e representando o que importa e as reais necessidades do povo periférico de todo o Brasil”, afirma André Fernandes, fundador da Agência de Notícias das Favelas.

ANF
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