O Discord também quer ser um 'tremendão' na música
Nascido no mundo dos games, plataforma vem atraindo artistas e selos em busca de novas formas de se relacionar com os fãs
Com 150 milhões de usuários mensais, o Discord é rei no mundo dos games - mistura de rede social com plataforma de comunicação, ele virou ferramenta fundamental para muitos jogadores. O serviço, porém, quer ir além e planeja também ser um 'tremendão' no universo da música. Bandas, artistas, selos e produtores começam a migrar para lá atraídos por elementos que pareciam abandonados pelas maiores redes sociais do mundo, como a construção de um senso de comunidade e ausência da mediação de conteúdo por algoritmos.
Em abril, o rapper Travis Scott quase causou um apagão na plataforma ao inaugurar o seu servidor (nome dado ao espaço que as pessoas mantêm dentro do serviço). Em poucas horas, mais de 100 mil fãs correram para o novo lugar. Antes dele, outros rappers, DJs, produtores e artistas da cena internacional de música eletrônica vinham experimentando no Discord - o serviço foi criado em 2015, mas foi nos últimos dois anos que ele passou a abrigar fãs e artistas do mundo da música.
"A música sempre foi parte integral dos games, então estamos empolgados de ver esse crescimento natural e constante", diz ao Estadão Kenny Layton, diretor de parcerias do Discord.
No Brasil, o movimento é ainda mais recente - começou apenas no ano passado. Embora nomes mais familiares, como Marcelo D2 e a banda Fresno (ambos conhecidos por sempre experimentarem novas propostas digitais), já tenham os seus servidores, a peregrinação nacional em direção ao Discord tem sido conduzida por artistas e selos independentes. Muitos estão interessados em encontrar novas maneiras de se relacionar com os fãs.
"O Discord não tem algoritmo. As pessoas que entram em um servidor têm interesse no que acontece ali. Elas serão expostas ao que é publicado", conta Marta Karrer, 25, uma das sócias do selo pernambucano PWR Records, que está no Discord desde agosto de 2020 e tem foco na produção musical feminina - atualmente, ela conta com 11 artistas em seu portfólio.
Marta sinaliza um resgate importante do Discord no mundo das redes sociais. Com o crescimento de Facebook, Instagram, YouTube e Spotify, a relação entre artistas e fãs deixou de ser direta e passou a ser intermediada por algoritmos. Mesmo que um fã decida seguir seu artista preferido, a IA que reina nesses serviços pode decidir não exibir o conteúdo. Adam Mosseri, presidente do Instagram, já afirmou que o crescimento da plataforma tornou impossível para que os usuários acompanhem tudo o que é postado, por isso decidiu lançar mão de algoritmos.
Isso, porém, não significa que os artistas viram benefícios no formato. Muitas vezes os conteúdos não são exibidos ou descem muito depressa no feed de fãs. Já no Discord, o artista tem a possibilidade de se comunicar diretamente, pois o servidor exibe tudo o que é postado. "É uma rede social bem menos ansiosa para quem quer mostrar sua música. Artistas que dependem muito do Instagram sofrem quando o algoritmo muda", conta Marta.
Não apenas isso: os artistas podem atingir um alto grau de organização nos servidores. Por lá, é possível criar diferentes canais - eles funcionam como versões modernas dos antigos tópicos de fóruns, que permitem a separação por temas e propósitos específicos. "O Discord é tudo aquilo que o Orkut gostaria de ter se tornado", afirma Arthur Ferreira, um dos membros do Biltre. A banda carioca encontrou jeitos engenhosos de utilizar a plataforma desde que criou o seu servidor no final de 2020.
São oito salas de vídeo, oito salas de texto e duas salas para encontros amorosos. Nem todas são usadas para divulgação de material da banda. Tem salas para compartilhamento de memes, para acompanhar BBB, para falar de livros, para escutar músicas juntos e para assuntos gerais. Boa parte delas são batizadas com nomes de músicas do grupo, como "Nosso amor vai dançar" (sala de flerte) e "Casa do Wilson" (sala para entrar com câmera).
Dentro dos canais, a relação tende a ser horizontal: artistas e fãs produzem e consomem conteúdo. "Por lá, as pessoas se sentem parte de algo", conta o cantor e compositor Mati. O gaúcho está no Discord desde o começo de 2020 e, além de interagir com fãs e amigos, costuma apresentar prévias de novas músicas na plataforma.
"O Discord é especial por oferecer um lugar online para passar bons momentos com a sua comunidade e amigos. Os servidores são privados por natureza e só podem ser encontrados por link direto, então eles são mais pessoais", diz Layton.
Identidade
"O Discord é uma plataforma focada em oferecer as melhores ferramentas de comunicação. E isso funciona muito bem para áreas que vão além dos games, como música e jornalismo. De certa forma, ele tem algumas características que lembram os tempos antigos da internet", afirma Forest Conner, analista da consultoria Gartner.
A valorização entre artistas e fãs faz a empresa mirar formas de crescer no mundo da música. O Discord, por exemplo, pensa em oferecer eventos com ingressos, além de criar parcerias gravadoras e agências de carreiras de grandes nomes da música. É uma maneira de atrair mais gente para o serviço.
"Também temos integrações com o Patreon, a Twitch e o YouTube que permitem criadores e comunidades monetizarem. Se o artista tem assinantes nessas plataformas, eles podem ganhar condições acessos especiais nos servidores", explica Layton.
"Existem diversas oportunidades para novas plataformas, como a criação de marketplaces ou de ferramentas exclusivas", explica Márcio Kanamaru, sócio-líder de tecnologia, mídia e telecomunicações da consultoria KPMG. "Normalmente, elas precisam criar fontes de receitas para manter um forte crescimento orgânico", diz.
Vale lembrar que o Discord rejeitou uma oferta de compra da Microsoft de US$ 10 bilhões, o que aumentou os rumores de que a empresa mira uma abertura de capital. Para isso, porém, seria preciso mostrar aos investidores uma proposta sólida de receita.
"Em um grande negócio, a empresa comprada pode não resistir à pressões, como para introduzir algoritmos e anúncios na plataforma. De certa forma, essa postura combina com as novas gerações, que não querem experiências pasteurizadas nos novos serviços. A busca pela identidade passa pela libertação do algoritmo", diz Kanamaru.
Ou como prefere dizer Marta: "No Discord, o artista manda no seu rolê".