Por que voltar à "Matrix" 20 anos depois?

Quarto filme da franquia que revolucionou o cinema em 1999 estreia em clima de nostalgia e em busca de relevância no mundo contemporâneo

23 dez 2021 - 13h53
"Matrix Resurrection" abusa da auto-referência e do humor para atualizar a saga em um mundo contemporâneo em que redes sociais são nossa projeção da vida real
"Matrix Resurrection" abusa da auto-referência e do humor para atualizar a saga em um mundo contemporâneo em que redes sociais são nossa projeção da vida real
Foto: divulgação

Porque precisamos de um novo "Matrix" em 2021? Talvez seja esta a grande pergunta que fãs apaixonados e espectadores mais céticos devam se fazer antes, e também depois, de assistir a "The Matrix Ressurections", que estreia nesta semana no Brasil e tem dividido opiniões. 

A criadora e diretora da saga Lana Wachovski, que desta vez não divide a direção com sua irmã, Lilly Wachovski, afirmou em um debate (xhttps://www.youtube.com/watch?v=rtLbghso0Zc) que tudo começou com um processo que surgiu de seu luto após perder num curto espaço de tempo seus pais e um amigo. "Eu não sabia como processar esse tipo de luto. Foi algo que eu realmente não tinha vivido tão intimamente. Uma noite eu estava chorando e não conseguia dormir e, de repente, meu cérebro explodiu com toda esta história"” comentou Lana. 

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"Eu não tinha  meus pais, mas de repente eu tinha Neo e Trinity, os personagens mais importantes da minha vida. Foi imediatamente reconfortante ter estes personagens vivos novamente. É bem simples. Você pode dizer: "Estas duas pessoas morreram… E então traga essas duas pessoas de volta à vida. Não seria legal?" Sim! E foi simples assim. Isso é o que a arte faz e é isso o que as histórias fazem. Elas nos confortam e isso é importante."

As sequências de 0 e 1 que marcaram época voltam no novo longa, que retoma a história de Neo em um futuro em que algumas coisas mudaram e outras nem tanto
Foto: divulgação

Lilly não quis voltar à Matrix, pois, segundo Lana, quis processar o luto de outra forma e retornar a um universo já visitado, fazer novamente este percurso teria o efeito oposto ao conforto que Lana sentia. Haverá, assim como as irmãs, os fãs que encontrarão conforto em reencontrar Neo e Trinity e os que vão se frustrar com esta volta à Matrix.

Questões pessoais à parte, ambas diretoras também já afirmaram em entrevistas que a Warner Bros sempre quis dar continuidade à saga. E, por esta combinação de fatores, e com o perdão do trocadilho, Matrix ressuscita de um sono profundo e chega ao tempo contemporâneo  em um mundo em que a realidade ( a "real" e a virtual) mudou muito e se tornou, paradoxalmente, mais complexo e um tanto mais binário desde 1999, quando "Matrix" foi lançado e revolucionou a forma de filmar ação, ficção científica, e unir isso à filosofia no cinema.

Pílula Vermelha ou Pílula Verde? Máquinas ou seres humanos? A comodidade da ilusão ou a dor, e o ruído, de se encarar a realidade de frente? Como nas sequências de 0 1 deliciosas de se assistir, os binarismos sempre rondaram não só a vida de Neo (ou Thomas Anderson "Keanu Reeves") mas também a trama criada magistralmente pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski.

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Dito isso, sem revelar muito da trama atual, um dos pontos mais interessantes desta nova saga reloaded (será que veremos outra trilogia?) é justamente a superação de alguns binarismos. As máquinas são de fato sempre inimigas? O pior inimigo é sempre o mais previsível? Vencer a própria apatia e o medo de sair da zona de conforto é tão ou mais difícil que vencer a Matrix? Filosofias com roupagem pop à parte, os questionamentos que "The Matrix Resurrections" traz ainda são, para muitos, o ponto mais interessante da saga Matrix. 

Roteiro se apega à força do amor entre Neo (Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) para dar sentido à volta da saga
Foto: divulgacao

A Trama

Antes de prosseguir, vamos à trama atual, Thomas "Neo" Anderson vive sua vida "normal" na Matrix. Sem se lembrar de nada de seu passado de luta e resistência, ele é um geek famoso que conquistou o mundo com um jogo revolucionário chamado justamente "Matrix". Todas as façanhas e memórias de Neo foram transformadas em trama no game que fez dele um mito para as novas gerações de criadores de games, um cara de sucesso que trabalha em uma grande empresa de tecnologia de games cercado por nerds que cresceram jogando e vivendo as histórias que Neo criou. 

A aparente normalidade e a apatia da vida de Neo/Thomas chegam ao fim quanto o chamado vem. Ele, que vive atormentado por lembranças que não sabe de onde surgem, cria uma brecha (ou modal) para que algo (ou tudo) mude e finalmente encontre as respostas para seus tormentos mentais. Ele trata estas lembranças na cadeira do terapeuta (vivido por Neil Patrick Harris) em sessões que só são interrompidas pelo sininho irritante da coleira do gato Dejá-Vu. A propósito, este novo filme é um manancial de easter eggs e referências que deixam qualquer fã nostálgico feliz da vida. 

Em paralelo, a grande corporação em que Thomas trabalha decide reviver "Matrix" e criar uma nova história (ou novo jogo) e vai fazer isso com ou sem seu criador. A auto-ironia e a metalinguagem do roteiro para contextualizar a história atual (a de Neo) e, de certa forma, a história atual do cinema (que bebe demais na fonte das sequências e reboots sem fim) são o ponto alto desta trama. Além das referências e da nostalgia, o humor é chave importante  para nos levar de volta à Matrix. 

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E há, claro, o mentor Morpheus (que, agora vivido por Yahya Abdul-Mateen II, também ganha uma nova roupagem) e há uma nova personagem que se destaca neste universo: Bugs, vivida por Jessica Henwick. É ela quem traz frescor a uma trama que oscila entre o déjà-vu do longa original e a proposta de novas histórias. O público, claro, ama quando Neo reencontra Trinity (ou Tiffany, na nova versão da Matrix) e entendemos que é o amor ( e a química entre Reeves e  Carrie-Anne Moss) a grande força da resistência. A infalível história de amor, e humanidade, em um mundo tão tecnológico e fake.

Claro que há quem goste mesmo do Bullet Time (não tecnicamente inventado pelas Wachowski, mas por elas sacramentado no primeiro "Matrix"), do kung fu e das inevitáveis cenas de ação. 

Há quem prefira a filosofia que, ainda que diluída, instigou adolescentes e jovens dos anos 1990 a se perguntarem por que, grosso modo,  o simulacro de uma vida que é só projeção do nosso real potencial é tão sedutor?  Sempre é bom lembrar que as Wachowski se inspiraram nas ideias do filósofo francês Jean Baudrillard  e que  Neo tinha um exemplar do livro "Simulacros e Simulação". Baudrillard, aliás, afirmou que elas não entenderam realmente seus escritos e que se frustrou ao perceber que mundo real e virtual em Matrix estavam muito apartados e que seria mais interessante explorar justamente as zonas cinzentas em que os dois mundos colidem. ( Mais aqui: http://cinegnose.blogspot.com/2012/08/matrix-revisitado-por-que-jean.html ). 

Mas, afinal,  por que preferimos viver numa ilusão de verdade e de padrões de vida, de comportamento, de relações de amor, de poder, de gênero (não por acaso a própria saga pessoal das irmãs Wachowski seja tão inspiradora)? 

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Entre as novidades, Hugo Weaving não é mais Agent Smith, que agora é vivido por Jonathan Groff e
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Mais de 20 anos se passaram desde as primeiras indagações de "Matrix". A propósito, questões que já tinham sido feitas em tantas outras obras de ficção científica e de filosofia, obviamente, mas que com "Matrix" foram empacotadas em um combo perfeito de "entretenimento+filosofia+ação técnicas revolucionárias de filmagem+a típica e perfeita jornada do herói". Dito isso, nestas duas décadas, passamos a viver em tantas projeções virtuais da vida real (ou simulacros?) que chega a ser irônico e engraçado pensar que o primeiro filme da saga foi realizado em um mundo sem whatsapp, instagram, youtube, facebook e twitter. 

Os simulacros deste mundo ilusório/virtual dominado por máquinas que aprisionam os seres humanos e casulos e se alimentam de sua energia, produzida enquanto suas mentes vivem estas vidas virtuais, são construídos por arquitetos que conhecem muito bem a alma (e os sentimentos, esses sim outra chave importante). Impossível não pensar nos simulacros deste dito mundo real em que vivemos atualmente, em que as redes sociais são criadas e comandadas por habilidosos arquitetos da TI. Tais redes funcionam mais que intermediárias das relações e vidas reais e se tornaram praticamente projeções de vidas desejadas e até mesmo uma segunda existência ideal para milhões (talvez bilhões) de pessoas. 

"The Matrix Resurrections", infelizmente, não faz com mais contundência esta ponte com 2021 neste quesito e nem aprofunda a discussão. Tão pouco revoluciona mais uma vez o gênero como "Matrix" fez em 1999. Há que se admitir que é tarefa quase impossível para Lana Wachowski voltar e superar a própria criação Ainda assim, as questões clássicas tão instigantes, embora submersas na auto-referência e nas cenas de ação, estão presentes nesta nova saga.  Mesmo que a trama seja irregular e recorrente demais à nostalgia que nos acalenta, voltar à Matrix seja por puro entretenimento sem compromisso seja para ampliar estas questões, após a sessão em um bom debate entre amigos, é sempre uma viagem válida. 

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