F1 e Netflix: o equilíbrio de interesses em Drive to Survive

A F1 confirmou que a série ‘Drive to Survive’ terá duas novas temporadas. Com audiência e críticas em alta, qual caminho seguir?

5 mai 2022 - 20h02
F1 confirmou mais duas temporadas de 'Drive to Survive'
F1 confirmou mais duas temporadas de 'Drive to Survive'
Foto: F1 / Divulgação

A Liberty Media assumiu a gestão comercial da Fórmula 1 em 2017 com uma missão clara: revigorar a imagem da categoria e ampliar o público consumidor, especialmente entre os mais jovens. Seria necessário dar um cavalo de pau na estratégia da gestão Bernie Ecclestone, que deu muito certo por um tempo, mas começava a cheirar naftalina nos anos 2010. O foco ainda era quase exclusivo em contratos TV e na manutenção de um público endinheirado, masculino e cada vez mais velho, desprezando deliberadamente a expansão do alcance para novas personas.

O trabalho até aqui tem sido árduo e, pode-se dizer com alguma segurança, bem feito. A F1 finalmente entrou com força no mundo digital. As redes sociais passaram a ser exploradas de forma inteligente. O YouTube, antes visto como inimigo, passou a ser um aliado - a própria F1 desenvolveu um canal repleto de conteúdos interessantes sobre o passado e o presente da categoria. Tal conteúdo também ficou disponível na F1TV, um sistema de streaming por assinatura que ganha cada vez mais força e diminui a dependência dos contratos de televisão para transmissão e promoção dos eventos.

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Tudo isso colaborou para que a Fórmula 1 começasse a chegar a olhos e ouvidos antes inacessiveis à categoria. Mas a cereja do bolo, certamente, foi a série documental ‘Drive to Survive’, produzida e transmitida pela Netflix.

Ao mostrar o que está por trás das cortinas, o funcionamento das equipes e intimidades de pilotos e chefes, a série rasgou a imagem sisuda, protocolar e hermeticamente fechada da Fórmula 1, expondo ao mundo um lado humano até então oculto. O conteúdo, somado ao tom didático, claramente voltando a quem não é familiarizado com o esporte, fez o interesse por parte de um público novo à F1 ser enorme.

Os espectadores mais antigos também tinham motivos para dedicar seu tempo à série. Mesmo que, porventura, não tivessem interesse nos meandros das biografias e dilemas dos pilotos, estavam lá interessantes assuntos de bastidores, como negociações de contrato entre equipe e piloto, a forma como a pressão de uma equipe chega a seus pilotos e até acordos de fornecimento de motores, por exemplo.

A exibição na maior plataforma de streaming do planeta só ajudou a alavancar o alcance. O sucesso foi estrondoso, e o efeito da série na Fórmula 1 como um todo é inegável. O resultado dos últimos anos de trabalho da Liberty é notado a olhos vistos, com autódromos lotados, audiência crescente, popularidade de pilotos nas alturas e um público renovado e bastante engajado.

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O sucesso foi particularmente grande nos Estados Unidos. Entrar no país da América do Norte era um sonho antigo da F1, e só agora a categoria dá sinais de consolidação por lá, com audiência crescente na TV e internet e autódromos lotados. O próximo fim de semana marca aquilo que podemos considerar o auge da F1 nos Estados Unidos, com a enorme repercussão do novíssimo GP de Miami. E não se espera nada menos que isso no ano que vem, quando entrará em cena uma terceira corrida no país, a ser realizada em Las Vegas, a capital do entretenimento.

Max Verstappen não participa de 'DTS' por entender que a série inveta rivalidades
Foto: Max Verstappen / Twitter

Em time que está ganhando não se mexe

Em 2022, ‘DTS’ chegou à sua quarta temporada, que tratou sobre a temporada de 2021. E a audiência, como sempre, foi grande. É bem verdade que a tensa disputa pelo título alavancou o interesse e criou grande expectativa em torno do que seria mostrado, mas o fato é que a série liderou as paradas da Netflix em mais de 30 países e superou os números das temporadas anteriores.

Se os índices seguem bastante positivos, o mesmo não pode ser dito da recepção por parte do público e de alguns pilotos. A quarta temporada da série recebeu críticas por exagerar na dramatização de situações, manipular diálogos via rádio e, novamente, forjar rivalidades. Os interessantes jogos de bastidores até apareceram, mas menos do que em outras temporadas.

Max Verstappen, atual campeão e um dos protagonistas da Fórmula 1, já se recusa a participar das gravações há alguns anos por entender que a série não representa a realidade da categoria. Outros pilotos, como Lando Norris, reclamaram publicamente da forma como a Netflix os abordou em certos momentos.

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Ciente da importância da série para a promoção da categoria e do risco de perder a participação de mais pilotos além do campeão, Stefano Domenicali, o CEO da F1, teve que agir. Ainda na primeira corrida desse ano, o mandatário conduziu uma reunião com equipes e pilotos para tratar justamente do teor de ‘Drive to Survive’.

À época, falou Domenicali, segundo a Motorsport: “Para despertar o interesse de um novo público, foi usado um tom que, de certa forma, focava na dramatização da história. É uma oportunidade, mas acho que precisa ser entendida. Vamos conversar com a Netflix, porque é preciso que a história não se afaste da realidade, senão, não cabe mais. Temos que garantir que um projeto que gerou uma tração tão excepcional tenha uma linguagem que continue atraindo, mas sem distorcer a imagem e o significado do esporte com o qual vivemos todos os dias.”

Da data da declaração até aqui, passou-se mais de um mês. A Netflix seguiu acompanhando a F1 e fazendo seus registros nos paddocks mesmo sem a confirmação pública de continuidade da série. Nessa quinta-feira, 05, a Fórmula 1 finalmente confirmou a renovação por mais duas temporadas.

Trata-se da primeira renovação multianual do contrato, que vinha sendo tratado ano a ano. Isso pode ser interpretado como uma demonstração de que o impacto da série para a imagem da categoria continua sendo bastante relevante, a ponto de já se garantir a cobertura de 2023 de forma antecipada.

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Lando Norris fez críticas à série após assistir à 4ª temporada
Foto: McLaren / Divulgação

Como conduzir de agora em diante?

A lógica do entretenimento e da busca implacável por emoção acima de tudo pode ser a razão para que 'Drive to Survive' exagerasse na dose e trouxesse os citados problemas de narrativa. Em uma série com pretensões documentais, isso significa algumas abordagens fora do tom e distorções de alguns fatos.

O problema maior é quando essa mesma lógica de altas doses de drama e tentativa de transformação de todo e qualquer momento em entretenimento irrestrito passa a ser aplicada no campo esportivo. Poderíamos ter, por exemplo, uma interpretação atabalhoada do regulamento em nome de uma decisão de campeonato na última volta. Imagina a confusão que isso causaria!?

É necessário encontrar um balanço. Se a série for mais Netflix que F1, o resultado por ser negativo para a própria F1. Cria-se um público ávido por ação e tensão que nem sempre estarão presentes, o que pode, em última instância, provocar uma decepção com a categoria – ou levar a problemas na condução da parte esportiva da coisa.

Mas se 'DTS' for muito F1 e pouco Netflix, perde-se o interesse na série. Por que alguém se disporia a assistir 10 episódios de 50 minutos cada para ver basicamente a mesma coisa que já viu na (F1)TV domingo sim-domingo não, apenas por outro ângulo?

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Certamente, isso tudo esteve na mesa de negociações entre Domenicali e a Netflix. Com os termos acertados, nos resta esperar para ver qual será a abordagem de ‘Drive to Survive’ nas duas temporadas recém-confirmadas. Será outra vez mais Netflix que F1 ou será que veremos um necessário equilíbrio entre entretenimento e realidade?

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