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'Falei para ficarem em casa, que era seguro. E não era’, diz mulher que perdeu 9 familiares nas chuvas de Petrópolis em 2022
Cristiane Gross perdeu filha, neto, sogra, cunhada e sobrinhas; sua casa desabou em 7 segundos na região serrana do RJ
O dia 15 de fevereiro de 2022 começou normal para a cozinheira Cristiane Gross. Como todos os outros, ela se levantou cedo, deixou o neto Arthur, de 5 anos, na creche, e junto da filha mais velha foi para o trabalho. Ela não poderia prever que, em algumas horas, sua vida mudaria para sempre. Naquela mesma data, nove familiares iriam morrer em um dos deslizamentos que ocorreram em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, devido às fortes chuvas que atingiram a região. Em sete segundos, 57 casas foram abaixo na Servidão Frei Leão.
- Essa reportagem faz parte da série Retratos da Ebulição, que conta histórias de brasileiros que tiveram suas vidas devastadas por eventos climáticos extremos --incêndios florestais, secas, chuvas e terremotos-- impulsionados pelo aquecimento global.
A história da família dela se parece muito com as das outras 227 pessoas que também morreram no desastre que assolou a cidade naquele dia. Casas, carros e tudo que tinha pelo caminho foi levado pela enxurrada e deslizamentos de terra. Inclusive, o mais importante: a vida de centenas de moradores.
A falta de infraestrutura de Petrópolis é exposta a cada nova chuva torrencial que atinge a região, como, por exemplo, a que ocorreu no último 5 de abril, que deixou 57 pessoas desalojadas. A cidade registrou mais de 300 mm em apenas 24 horas, o equivalente a 50% acima da média prevista para todo o mês de abril. Em um dos bairros mais atingidos da cidade, o São Sebastião, o volume registrado foi de 301mm. A cidade decretou estado de emergência. Essas águas são fruto das mudanças climáticas que emergem no planeta a cada novo dia.
"A cidade não comporta mais esse tipo de evento e a gente sabe que daqui para frente vai ser pior, porque a mudança climática está aí, não tem como mudar a natureza. Eu sempre falo que ela não está batendo, ela está gritando" -- Cristiane Gross
Em sete segundos, tudo desmoronou
Naquele 15 de fevereiro, até às 15h30, estava tudo normal, conta a cozinheira ao Terra. Quando ela saiu do trabalho, em um restaurante em um shopping da cidade, já chovia muito. E, na cabeça dela, seria mais uma chuva torrencial, como todas as outras, e que passaria logo. “Mas não foi assim”, relembra. Ela e a primogênita, Mariana, ficaram presas dentro do estabelecimento. Os seguranças pediram para que as lojas fechassem, porque a água estava infiltrando do solo, e ninguém sabia como ficaria a estrutura. Ao mesmo tempo, os familiares já estavam em casa, na Servidão Frei Leão, no alto da serra.
“Eu me lembro como se fosse hoje. Estava em contato com o pessoal em casa, e a única coisa que eu falava para eles era: ‘Já vai passar, calma que já vai passar, vai ficar tudo bem. Isso aí é mais uma chuva, que a gente já está acostumado. Assim que a água escoar eu estou indo embora’. Mas não foi assim”, aponta.
Por volta das 18h15, segundo ela, 86 pontos da cidade tiveram deslizamentos. “Parece que foi cronometrado, sabe?”, ressalta. Ela estava presa na escadaria do mercado que fica ao lado do shopping, e viu um deles acontecer.
“Vi aquela montanha na frente explodir. Na minha frente, mas com tudo que eu vi, não consegui imaginar a proporção. Achava que a água ia escoar. Perdi o contato com a minha filha em casa, mas eu achei que tivesse sido uma queda de luz, de internet. Nunca, nunca, nunca, em todos os meus pensamentos, imaginei que a gente tinha tido aquele escorregamento ali, aquela coisa absurda. Foram 54 casas em sete segundos, totalmente devastadas”.
Quando conseguiu sair do trabalho e ir para casa, ainda não sabia o que havia acontecido. Embora conhecidos ligassem para ela para saber se estava tudo bem ou para dizer que tudo estava desmoronando, ainda assim, Cris não imaginava a gravidade de tudo aquilo.
37 horas de esperança
Ela chegou na região onde morava por volta das 19h30, quando se deparou com o cenário de destruição. Ficou em estado de choque. Horas depois, um grupo do Corpo de Bombeiros conseguiu chegar até o local e subiu o morro para tentar resgatar possíveis vítimas. Fábio foi junto.
“Uns 40 minutos depois o meu marido desceu, eu estava sentada na calçada e ele falou: ‘Cristiane, acabou. Não tem mais nada lá em cima’. Mesmo assim, a ficha não caiu. Fiquei eu acho que 37 horas sentada na calçada, com esperança. Não sei o que passava na minha cabeça”, emociona-se ao se lembrar da tragédia.
Nesse período, equipes dos bombeiros, Polícia Militar, Exército e Defesa Civil chegavam aos montes para ajudar no resgate dos corpos, ou então, tentar encontrar alguma vítima com vida. A cozinheira e o marido permaneceram ali, enquanto a noite virava dia, que virava noite, e depois, dia de novo.
Em dado momento, quando já estava escurecendo de novo, ela perguntou a Fábio para onde iriam. Afinal, além dos familiares, eles perderam o lar, com todas as suas coisas, o lugar de refúgio, de acalento depois de um dia ruim de trabalho. Ali, eles só tinham um ao outro, além da filha mais velha, e também o carro que ficou preso com o marido no trabalho durante o temporal.
“Ele falou: ‘qualquer coisa a gente dorme no carro’. Sabe, assim? Você não saber que direção tomar. Eu saí de casa no dia 15, 9h e voltei e não tinha mais nada. Bens materiais, isso nunca foi o meu problema. Agora, você estar ali, em comunicação, acalmando e falando para que ficassem em casa, que lá é o refúgio, que é seguro. E não era. É muito triste”, diz Cris em meio a lágrimas.
Na tragédia, ela perdeu o neto Arthur Affonso, de 5 anos, a filha Ana Carolina da Silva Affonso, de 19, a sogra, Valdecir Affonso, de 75, os sobrinhos Joyce Affonso, de 21, Sofia e Larissa, de 5, e Miguel de 17 dias, a cunhada Michele Affonso, de 32, e a vizinha Rute Helena, de 73.
Somente ali, na Frei Leão, foram contabilizados 93 mortos. De dentro da casa de Cris, as nove pessoas, incluindo a vizinha que se abrigou lá por medo da chuva, perderam a vida. “A casa dela estava lá, ficou em pé e aconteceu ali”, descreve.
Naquele dia, a Defesa Civil registrou 95 ocorrências, entre 80 deslizamentos e 11 pontos de alagamentos. Em cerca de seis horas, choveu 259 milímetros, mais que o esperado para o mês todo. Além dos mortos, os deslizamentos deixaram mais de 4 mil desabrigados.
30 anos de uma vida embaixo dos escombros
Cris é natural de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em 1987, se mudou para Petrópolis, pois o pai é militar e ele havia sido transferido para a cidade serrana. Em 1990, ela conheceu seu marido, Fábio, que já morava na região. Há alguns anos, eles haviam se mudado para o local da tragédia, pois a área onde residiam antes, na Lopes Trovão, tinha sido interditada pela Defesa Civil por risco de desabamento devido a uma enchente em 1988. “A barreira passou do lado [de onde moravam]”, explica.
Com as economias, a família comprou o terreno em Lopes Trovão e construiu a casa. Em 1993, o pai da cozinheira voltou para Porto Alegre (RS) e ela ficou morando com Fábio. Após a interdição, como o casal não queria pagar o aluguel, a sogra cedeu um pedaço do terreno para que eles construíssem o próprio lar. Foram quase 30 anos ali, em uma casa de três andares. “Acordava de manhã, olhava na varanda a montanha, a floresta. Era lindo, tudo lindo, os passarinhos. Eu nunca imaginei que aquele tipo de coisa pudesse acontecer ali”, declara.
Segundo ela, um mapeamento da área foi feito com a Defesa Civil, usamos imagens do Google Maps de antes e depois, e uma geóloga teria ficado desacreditada que tudo foi morro abaixo. “Minha casa era mega estruturada. A dos meus vizinhos eram a mesma coisa, casas muito boas. Ninguém construiu de qualquer jeito, a gente sabia o que tinha que fazer ali, o que era certo.”
Seguindo em frente
Ela e o marido ficaram na casa de um amigo por quatro meses, até que eles conseguissem reunir forças para buscar um novo lar para morar. “Eu fiquei um mês dentro de casa em estado de choque. Só que botei na minha cabeça que não adiantava ficar deitada, deprimida, vendo uma cidade colapsar, que é o que aconteceu. Nós estamos aí numa cidade colapsada, falida, totalmente abandonada pelo Poder Público. Prevenção? Zero. As prioridades do governo são outras”, destaca.
Eles conseguiram o aluguel social, mas receberam vários ‘nãos’ quando o locatário sabia que envolvia a prefeitura, até locar um apartamento no Quissamã, onde vive hoje, mas afirma que apesar de viver dignamente, não se identifica ali. E também não se sente segura, pois acredita que nenhum lugar da cidade é seguro para morar.
"Fui arrancada das minhas raízes" -- Cristiane Gross
A sobrevivente conseguiu se reestruturar, tanto ela quanto o marido mantiveram o emprego, e então, ela se engajou numa luta para ajudar outras famílias vítimas das enchentes. É de lá que ela tira forças para lidar com a dor de perder tantas pessoas de uma só vez.
“Eu não consegui viver meu luto ainda. Vou ser sincera com você, porque a gente começou um movimento, e eu cobro muito das autoridades o acolhimento nessas horas. Você sabe o que é estar totalmente desestabilizado, com o psicológico abalado, que desencadeia o teu físico também, chegar num Cras, numa assistência social para fazer um cadastro, e não ter um retorno positivo desses órgãos? Eu venho cobrando isso desde 2022”, explica.
Há pouco mais de três anos, Cris encontrou na solidariedade um meio de seguir a vida, quando fundou o projeto A Glória da Segunda Casa, que ajuda vítimas das enchentes na cidade. Atualmente, 190 famílias são cadastradas, mas, infelizmente, o orçamento é limitado, então, não consegue atender sempre a todas.
Segundo a cozinheira, é feito ali tudo o que se pode: cursos gratuitos, distribuição de cestas básicas e doações. “Foi uma maneira que eu vi de conseguir ficar em pé, ajudando o próximo. E é o que eu tenho feito há três anos e três meses”, frisa.
Omissão do Poder Público
Ela também se juntou com o pessoal de Vila Felipe, o segundo lugar mais afetado pelas chuvas e com mais óbitos. Juntos, criaram o grupo SOS Frei Leão, onde há 120 famílias lutando para a reconstrução dos bairros, captação de água e obras de prevenção, pois tudo ficou completamente abandonado.
Ela chegou a ouvir durante uma audiência pública que nada seria feito. “Tipo: morreu, acabou”, relembra. Mas a sua luta e a de outros sobreviventes, trouxe o olhar do Ministério Público para a causa. E a Prefeitura de Petrópolis se viu obrigada, por meio de uma ação civil pública, a fazer a reconstrução nos locais apontados.
“Acho que se houver prevenção não tem calamidade, não tem emergencial. [...] Tudo deles é protocolo, e acho que numa situação dessa, de 300 milímetros de chuva, não tem que ter protocolo. Você tem que agir e rápido. A cidade não comporta mais esse tipo de evento e a gente sabe que daqui para frente vai ser pior porque a mudança climática está aí. A gente tinha que ter feito isso há 40, 50 anos atrás, hoje não, hoje é prevenção”, finaliza.
Obras na cidade
Cris diz que luta há três anos para a conclusão da obra que intitula como ‘faraônica’ e que seu objetivo era que tudo ali fosse reflorestado e impedido de construir novamente, mas acha pouco provável.
Questionada sobre as obras, a Prefeitura de Petrópolis respondeu ao Terra que a atual gestão coloca a realização de obras de contenção de encostas e drenagem entre as prioridades do município.
As obras em andamento são:
- Rua 1º de Maio e Servidão Modesto Garrido, no bairro Castelânea, na Estrada do Paraíso, no bairro Sargento Boening;
- Rua 24 de Maio, no Centro, e dois lotes de obras no Morro da Oficina (Servidão Frei Leão), localizado no Alto da Serra.
Além disso, a administrção pública diz que busca viabilizar novos investimentos e concluir os trâmites burocráticos para liberar R$ 60,9 milhões em obras selecionadas pelo PAC em 2024, na Rua Amaral Peixoto/Quitandinha, Comunidade Vai Quem Quer, Rua Paulista, Rua Teresa, Rua Henrique Paixão, Morro do Pinto/Caxambu, Rua Elisa Mussel, Atílio Marotti e Bataillard.
Segundo a prefeitura, o município se inscreveu em novos projetos tanto de contenção de encostas quanto de drenagem urbana dentro da nova chamada do PAC 2025 e já articula em Brasília para que as propostas sejam aprovadas.
“Em relação à chuva de 2022, 124 obras - entre elas, contenção de ruas e de margem de rios - e outros serviços relacionados (como limpeza de vias e remoção de blocos de rochas) foram concluídos antes do início da atual gestão, totalizando R$ 88,7 milhões. Todas as obras que foram entregues foram aceitas pelo município, sem necessidade de revisão”, declara.
Já quanto a Vila Felipe, a prefeitura informou que houve uma obra de contenção e outra de pavimentação e drenagem na Rua Juvenal Amaral, além de uma obra de recuperação da Travessa Frederico Karl, avaliadas em R$ 762,2 mil. A atual gestão ainda avalia a possibilidade de realizar outras intervenções no bairro.
Chuvas e o aquecimento global
Nos últimos 33 anos, entre 1991 e 2023, o Brasil teve 4.518 mortes por ocorrências de alagamentos, enxurradas, inundações, movimento de massa, tornado, vendavais, ciclones, chuvas intensas e granizo. Em 2011, 953 pessoas perderam a vida, maior número de óbitos da média histórica. Em 2022, foram registrados 601, sendo 348 somente no Estado do Rio de Janeiro.
Micael Amore Cecchini, meteorologista e professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), aponta o aumento da frequência das tempestades intensas, o indica uma possível relação com o aquecimento global.
“De modo geral, o que se sabe sobre o aquecimento global é que ele causa um acúmulo de energia no planeta, que aumenta as temperaturas. Isso gera um problema na atmosfera, pois ela quer se livrar desse acúmulo e redistribuir essa energia. E como ela faz isso? Gerando tempestades, movimentos de vento. Então, a atmosfera fica mais ativa, digamos assim, quando tem mais energia e também maiores temperaturas”, explica.
Segundo o especialista, é esperado para o futuro que ocorram mais tempestades intensas, mesmo que a quantidade de chuva possa ser parecida com a de agora, o que pode mudar é o intervalo em que esse acumulado vai cair sobre as regiões.
“Suponhamos que chova 100 milímetros no mês. Se esse acumulado for dividido em duas tempestades, será diferente do que se chover fraquinho ao longo de várias semanas. Mesmo que em alguns lugares não tenha tanta diferença no total de chuva, a qualidade, digamos assim, dessa chuva está sendo mudada”, aponta.
Cecchini também explica que, mesmo nos cenário mais otimistas, o aquecimento global deve seguir, portanto, vamos continuar tendo aumento das temperaturas, mesmo se pararmos de queimar combustíveis fósseis e desmatar hoje.
“Então, a gente espera que essas coisas vão se agravando para o futuro. Tanto as chuvas locais mais intensas, quanto as secas também vão ser intensificadas, são os extremos. Isso é uma coisa que a gente tem a observar, e é claro que não vai ser igual em todo lugar”, finaliza.
*Essa reportagem teve a coordenação e edição de Aline Küller e Larissa Leiros Baroni.