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Incêndio Pantanal  Foto: CBMS/Divulgação

'Dói demais ver tudo virar cinza': a angústia de indígena brigadista diante do fogo que destrói o Cerrado e Pantanal

Enquanto o fogo consome biomas, brigadas indígenas voluntárias atuam para proteger seus territórios, suas tradições e suas existências

Imagem: CBMS/Divulgação
  • Isabella Lima Isabella Lima
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22 abr 2025 - 07h28
(atualizado em 25/4/2025 às 00h56)

Um cemitério a céu aberto. Foi o que virou o Cerrado e o Pantanal --biomas ricos em biodiversidade--, após os incêndios devastadores de 2024. O verde deu lugar ao cinza, e o colorido dos animais se transformou em pó. Cobras foram carbonizadas, macacos não conseguiram escapar das chamas a tempo, jacarés foram petrificados e muitos anfíbios consumidos pelo fogo. Dos poucos sobreviventes, a marca da tragédia histórica escancarada na desnutrição, nas queimaduras graves e até no olhar assustado diante de um habitat natural destruído.

  • Essa reportagem faz parte da série Retratos da Ebulição, que conta histórias de brasileiros que tiveram suas vidas devastadas por eventos climáticos extremos --incêndios florestais, secas, chuvas e terremotos-- impulsionados pelo aquecimento global.  

Para muitos, o episódio se resume às fotos chocantes que percorreram o mundo. Mas para o indígena Alvino Cabroxa, que não só presenciou, mas também lutou contra as chamas, os rastros dessa tragédia estão na pele e na alma. Foram 11 dias tentando se livrar do fogo. Mais de 264 horas sem dormir, testemunhando a devastação do seu habitat, do seu sustento e das suas tradições, que compromete o futuro de comunidades inteiras.

"E depois que apagamos tudo, ficamos mais dois dias cuidando para não pegar fogo de novo", conta o indígena, que é um dos líderes da brigada voluntária de combate a incêndios da aldeia Brejão, em Nioaque, área de Cerrado no Mato Grosso do Sul. 

Mesmo com dificuldade de conseguir traduzir em palavras, Alvino não esconde a dor de ver 'tudo virar cinza', quilômetros de florestas devastados e o desaparecimento de frutos nativos como o cumbaru. Mas, para ele, o mais cruel de tudo foi o sofrimento dos animais atingidos pelas chamas.

"A gente se propôs a ajudar porque quando pega fogo aqui nas nossas matas, vemos muitos animais morrer. Temos macacos, quatis, onça-parda, onça-pintada, antas, de tudo. Nem os passarinhos conseguem escapar", conta ele.  

"É um sentimento muito triste, que só a gente que vê sabe. Dói demais a situação dos animais" -- Alvino Cabroxa

Não muito distante da aldeia de Alvino, a história de uma onça vítima desse cenário comoveu o Brasil em 2024. Com patas queimadas, infestadas por larvas e mancando, Miranda vagou pelo Pantanal mato-grossense durante os incêndios de agosto, até ser resgatada e passar mais de 40 dias em tratamento. A onça-pintada, capaz de nadar, saltar e correr a 80 km/h, mostrou-se indefesa diante da força das chamas que atingiram a região.

Miranda sobreviveu e foi devolvida à natureza após o tratamento, mas muitos animais não tiveram a mesma chance. O número de animais mortos nos incêndios do Pantanal em 2024 não foi contabilizado. Mas, o fogo se alastrou com tanta velocidade que milhares de animais foram encontrados petrificados em posição de fuga, presos à vegetação em chamas.

"Você vê jabutis e catetos carbonizados, macaquinhos subindo em árvores e se jogando no chão pra fugir do calor. Só quem está lá sabe o quanto é difícil", lamenta Alvino, com a voz embargada. 

A biodiversidade do Pantanal conta com mais de 2.000 espécies de plantas, 269 peixes, 131 répteis, 57 anfíbios, 580 aves e pelo menos 174 mamíferos. No Cerrado, em contrapartida, são estimadas 199 espécies de mamíferos, 180 de répteis, 150 de anfíbios, 1.200 espécies de peixes, e 90 mil tipos de insetos.

Fim das terras cheias de vida

Jacaré morto em lagoa seca próxima à rodovia Transpantaneira em 22 de setembro de 2020, na cidade de Poconé, no Mato Grosso
Jacaré morto em lagoa seca próxima à rodovia Transpantaneira em 22 de setembro de 2020, na cidade de Poconé, no Mato Grosso
Foto: NurPhoto/Colaborador/Getty Images

Há anos o líder indígena da brigada testemunha o fogo que chega rugindo com o vento, em labaredas altas e fortes, partir deixando para trás o silêncio em terras que antes eram cheias de vidas. 

"A gente vive com o fogo desde pequeno. Já vem lutando com isso desde cerca dos meus oito anos. Na época, eram nossos pais nessa luta e, agora, somos nós", relata Alvino. No entanto, a paisagem natural se transformou. "Só na aldeia mesmo que temos mais matas. Antes, a região da nossa aldeia era Cerrado, agora não, o que não queimou, já virou tudo soja e milho", diz Alvino em tom de revolta e tristeza. 

Árvores foram atingidas pelo fogo em Corumbá (MS)
Árvores foram atingidas pelo fogo em Corumbá (MS)
Foto: Gustavo Basso/NurPhoto via Getty Images

Além do desmatamento nessas áreas, a crise climática vem intensificando os desafios vividos pelos indígenas. Com a vegetação secando aceleradamente pela escassez de chuvas, cada foco de incêndio na aldeia de Alvino se transforma em emergência. Segundo o brigadista, o combate às chamas torna-se mais complexo pelo vento que muda de direção constantemente, o que faz com que a comunidade mantenha vigilância permanente para não ser surpreendida.

A fumaça é outro problema. "Além da que vem do Pantanal, ano passado chegou muita fumaça da Bolívia. Quem tem problemas respiratórios sofre", diz Alvin, que cita a falta de médicos especializados para o  atendimento aos brigadistas e doentes crônicos.

"O fogo aqui chega a 2 ou 3 metros de altura. Ano retrasado queimou uma parte grande da mata. Árvores adultas e médias morreram. Algumas estão se recuperando, mas outras não voltam mais", relata o indígena. Mas é ao lembrar de sua luta contra esse fogo que ele mostra o orgulho de ser um brigadista voluntário. "Não pretendo parar, não é só por mim, é por todos, e principalmente pelos animais." 

No ano passado, sua equipe resgatou 12 jabutis, que foram tratados e devolvidos à natureza. Mas, apesar dos esforços, os recursos ainda são limitados. "Não temos veículos adequados. Quando há um incêndio, dependemos de caronas. Um leva a bomba, outro o abafador, alguns vão de moto". Mesmo assim, atendem não só sua aldeia, mas outras quatro comunidades indígenas da região.

Milhões de hectares em chamas 

Juntos, Cerrado e Pantanal perderam 12,3 milhões de hectares para as chamas em 2024, uma área que equivale a:

  • 17,5 milhões de campos de futebol carbonizados (cada campo padrão FIFA tem 0,7 hectares)
  • 48 mil campos destruídos por dia ao longo do ano
  • Maior que toda a extensão de Portugal (9,2 milhões de hectares)
  • 81 vezes o território da cidade de São Paulo (152,1 mil hectares)

Dados do MapBiomas mostram que 9,7 milhões de hectares do Cerrado foram consumidos pelo fogo ano passado-- o equivalente a 85% de sua cobertura vegetal natural, especialmente nas áreas de savana. O número representa um salto de 91% em relação ao ano anterior, marcando o pior cenário desde 2019.

Já no Pantanal, dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa/UFRJ) apontam que o  bioma perdeu 2,6 milhões de hectares afetados por incêndios em 2024 --o equivalente a 17% de toda sua extensão (estimada em 15 milhões de hectares). 

O território do bioma devastado pelo fogo ano passado representa um aumento quase três vezes maior que os 0,9 milhões de hectares queimados em 2023. Na comparação histórica desde 2012, apenas 2020 superou os índices atuais, com 3,6 milhões de hectares consumidos pelas chamas durante a crise de incêndios ocorrida durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Segundo o MapBiomas, o País teve 30,8 milhões de hectares atingidos por incêndios entre janeiro e dezembro de 2024, área superior ao território da Itália. O número representa um aumento de 79% em relação a 2023, com 13,6 milhões de hectares a mais consumidos pelo fogo. Do total queimado, 73% correspondiam a vegetação nativa, com destaque para formações florestais. 

Os estados mais afetados foram:

  • Pará - 7,3 milhões de hectares
  • Mato Grosso - 6,8 milhões de hectares
  • Tocantins - 2,7 milhões de hectares

Por trás dessa tragédia anunciada, uma combinação: as mãos humanas que promovem desmatamento e os efeitos do aquecimento global, que juntos transformam florestas em cinzas. 

De acordo com Gilvan Sampaio, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 99,9% dos incêndios que ocorrem no Brasil são intencionais, não naturais. "O que acontece com o aquecimento global? O nome já diz, a temperatura fica mais alta, o que faz com que a vegetação fique mais seca antes. Então, o potencial para ocorrência de queimadas aumenta em função do aquecimento global".

Segundo o pesquisador, nas regiões secas, como Norte e Nordeste, o aumento da temperatura eleva a demanda por evaporação para a formação de nuvens e chuvas. No entanto, como a região já é naturalmente seca e com baixa umidade, o processo de formação de nuvens se torna menos eficiente quando a temperatura sobe, pois não há água suficiente para alimentar a atmosfera. Como resultado, essas áreas ficam ainda mais áridas.

"O Pantanal tem duas estações bem definidas, a das chuvas e a da seca. O que a gente está observando ao longo dos últimos anos é que a estação chuvosa tem cada vez menos chuvas. E isso tem relação com o aquecimento global, mas também com o desmatamento da Amazônia", explica ele.

Gilvan destaca que a Floresta Amazônica desempenha um papel crucial que vai além de representar 7% da superfície terrestre e abrigar 10% da biodiversidade mundial. Ela é responsável por regular diretamente o regime de chuvas não apenas no Brasil, mas em toda a América do Sul, incluindo o Pantanal.

"Uma árvore adulta da Floresta Amazônica consegue retirar pelo sistema de raízes, levar até suas folhas, onde ocorre o processo de evapotranspiração e levar 300 a 500 litros para atmosfera. Porque tem raízes com profundidades muito grandes e conseguem retirar água do solo e jogar isso para atmosfera. 50% do vapor forma nuvens e chove na floresta, mas outros 50% é redistribuído para outras regiões da América do Sul, e uma delas é o Pantanal", diz o pesquisador. Áreas desmatadas perdem essa capacidade de bombeamento de água para a atmosfera.

O especialista ressalta que, como as queimadas são predominantemente causadas por ação humana, elas estão ligadas não apenas ao clima mais seco, mas também às motivações econômicas por trás do desmatamento. 

"No Brasil é necessário ter desmatamento zero, não só da Amazônia, Pantanal, mas também do Cerrado. O ciclo da água é muito impactado pelo desmatamento. E também é preciso, em nível global, ser feita a descarbonização dos meios de produção, usar mais fontes renováveis e cada vez menos petróleo e carvão mineral, que aumentam a concentração de CO2 na atmosfera e intensificam o aquecimento global", alerta ele.

Micael Amore Cecchini, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, alerta que mesmo nos cenários mais otimistas, com os atuais níveis de desmatamento, o aquecimento global continuará elevando as temperaturas. "As coisas podem se agravar no futuro. Então, acreditamos que as secas serão intensificadas e ocorrerão com mais frequência".

Efeitos do aquecimento global

"Com o aquecimento global, pra nós hoje é muito radical, prejudica demais, porque seca demais as terras", desabafa Alvino. A crise climática já impacta diretamente a sua comunidade: "Hoje, nós não conseguimos plantar muito mais. A lavoura, você planta, já não dá mais, porque seca demais. Tudo que a gente produzia antes, agora já não produz", lamenta. Com a escassez de chuvas na região só há "garoa, dá aquelas garoazinhas", e até cultivos tradicionais como arroz, feijão, mandioca e banana estão mais difíceis. 

Os padrões de chuva, que antes eram regulares -- entre dezembro e abril --, agora são imprevisíveis, deixando os moradores em constante alerta. O desequilíbrio afeta também a fauna local. Com o avanço das plantações de soja e milho nas fazendas vizinhas, os animais selvagens perdem alimento e invadem as roças da aldeia. "Os bichos não comem soja, então eles vêm pra cá. E o pouco que a gente ainda produz aqui, eles acabam comendo tudo", explica Alvino. 

A escassez de alguns alimentos e frutos também é uma realidade descrita pelo indígena Valdeir Kaiaho Itamare, do povo Kurâ-Bakairi. A comunidade indígena dele habita o Mato Grosso, onde a temporada seca se inicia em maio e se prolonga por vários meses. Em 2024, o incêndio que devastou a região de suas terras teve origem em uma queimada realizada por um agricultor local para limpar sua roça. O fogo, no entanto, fugiu ao controle e se alastrou pela região.

Com as chamas, as plantas medicinais usadas em rituais ancestrais e como medicação, muitas frutas que garantiam segurança alimentar e as matérias-primas para artesanato tradicional viraram cinzas. Na aldeia, crianças e idosos passaram a sofrer com crises de tosse seca e falta de ar, enquanto a fumaça espessa persistia por dias no território indígena.

"Muitas plantas que usamos para rituais e tratamentos ficaram destruídas. Algumas demoram muito a crescer. O piqui do cerrado, o cajuzinho, frutos que são nossa comida e remédio, às vezes, são mais difíceis de achar. Vimos muitas cobras queimadas, quatis, tatus...", relata Valdeir, que não esconde o temor com o futuro.

"Quando a gente vê [a destruição] dá vontade de chorar, é um sentimento de impotência sabe. A sociedade precisa cuidar das florestas e plantar árvores, se não podemos estar caminhando para um caminho sem volta. A natureza é que nos dá vida" -- Valdeir Kaiaho Itamare,

Heróis dos biomas

Com o avanço do fogo, a brigada voluntária liderada por Alvino tornou-se essencial no combate aos incêndios que ameaçam seu território.   

O conhecimento territorial dos brigadistas indígenas faz com que, muitas vezes, eles sejam os primeiros a detectar focos de incêndio, acionar os órgãos competentes e iniciar o combate às chamas antes que se propaguem. Hoje, são vistos pela comunidade não apenas como combatentes, mas como guardiões que oferecem proteção e esperança frente ao desastre.

O grupo realizou seu primeiro treinamento para combate a incêndios em 2019. Hoje, com o apoio da ONG Ecoa, dispõe de equipamentos que ampliam sua capacidade de atuação contra as chamas. "Quando recebemos a bênção de ser brigadista, ganhamos da ONG ferramentas como abafadores e assopradores, que ajudaram muito", conta orgulhoso Alvino.

De acordo com ele, em casos de incêndio, a brigada prioriza as áreas onde o mato se aproxima das moradias. "Ver uma casa queimar é horrível. Muitas famílias já têm pouco, imagina perder o pouco que têm".

A admiração por esse trabalho voluntário feito por eles transcende gerações entre os indígenas. Durante uma madrugada de combate às chamas, três crianças de 7 a 8 anos seguiram Alvino sem que ele percebesse, adentrando a mata para ajudar.

"Quando vi, levei um susto. Tive que levá-las pra fora. É perigoso, a gente nunca sabe quando as chamas podem voltar", relembra ele, destacando que para as crianças o enfoque principal é a educação preventiva.

Essa conscientização é justamente o objetivo das palestras que sua equipe realiza em escolas e aldeias, capacitando a comunidade sobre manejo seguro do fogo. "Avisamos: se for queimar, chame a brigada. E se for perto de casa, mantenha longe do capim. Se o fogo escapar, apague com água. As crianças e jovens ajudam muito, alertando os pais quando veem alguém ateando fogo sem aviso. Eles falam: 'Já chamou a brigada? Por que está queimando?' ", conta.

Recentemente, Alvino participou de capacitações em Corumbá e Campo Grande. "Este ano ainda não tivemos incêndios aqui, mas o curso alertou: de junho em diante, o Pantanal vai arder. Dizem que será 'um fogo por pessoa'. Já estamos muito preocupados em como vai ser. Precisamos de mais apoio dos órgãos públicos. Um caminhão-pipa seria essencial para nos ajudar. E também precisamos de mais conscientização. Quanto menos fogo, menos destruição".

*Essa reportagem teve a coordenação e edição de Aline Küller e Larissa Leiros Baroni.

Fonte: Redação Terra
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