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O peso da água   Foto: Beatriz Araujo/Terra

Ela perdeu o filho e teve a casa comprometida após enchente no RS: 'Esperando o último dia da vida'

Aos 88 anos, Dorilda da Silva vive em Canoas, cidade gaúcha com o maior número de pessoas atingidas na tragédia histórica de maio de 2024

Imagem: Beatriz Araujo/Terra
  • Beatriz Araujo Beatriz Araujo
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30 abr 2025 - 04h59
(atualizado às 06h07)

"Deus poupou minha vida". É o que acredita Dorilda da Silva, de 88 anos, que viu tudo ao redor de onde vive ficar submerso na enchente histórica que atingiu o Rio Grande do Sul em abril do ano passado. Quando a água baixou, ela deu "glória" por sua casa de madeira, onde mora há 40 anos, ter ficado de pé. Lá no Mathias Velho, um dos bairros de Canoas que mais foram afetados pela tragédia, muitas não aguentaram. Seus filhos não queriam que ela voltasse para a casa, que está longe de ser a mesma. Lá a vistoria nunca passou. Tecnicamente, a casa segue apta para morar, por mais que o piso e o teto digam o contrário. Ela não tem pra onde ir. É sua casa. O que ela queria, mesmo, é que seu “bebê”, um dos filhos mais novos, não tivesse partido.

Foto: Beatriz Araujo/Terra
  • Essa reportagem faz parte da série O peso da Água, que aborda os traumas e as marcas dos moradores do Rio Grande do Sul mesmo um ano após as enchentes históricas. O Terra passou pelas cidades de Eldorado do Sul, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.  

Eloir Nunes, de 52 anos, não está na conta das 184 pessoas que morreram em decorrência das enchentes no Estado. Nem no Rio Grande do Sul ele estava. Dorilda explica que o filho, que era caminhoneiro e vivia em São Paulo, sofreu um ataque cardíaco após ter conhecimentos dos estragos provocados pelas chuvas. Sem notícias do paradeiro da mãe, ele pensou no pior e acabou não resistindo.

Quando me aproximei da sua casa, essa foi a primeira coisa que ela contou. Em tom de revolta e indignada por, em um ano, nunca ninguém ter ido lá ouvir o que ela tinha para contar. Ficou desconfiada, não acreditava que eu tinha saído de outro Estado para escutar relatos de sobreviventes da enchente. Demorou para pegar confiança. Mas acabou me chamando para entrar e sair da chuva.

“A enchente veio e tomou conta de tudo”. As marcas, realmente, estão por todos os cantos de sua casa. O piso de madeira faz barulho ao pisar. Antes era “um brilho”, como contou. Ela pagava uma pessoa para lavar e encerar, já que não conseguia mais fazer a limpeza por causa da coluna. Depois da enchente, filhos e vizinhos se juntaram para limpar sua casa e tiveram que raspar a sujeira com a enxada.

Nos fundos da casa, há um cômodo praticamente vazio e com o teto inchado, solto, que transmite a impressão de que pode desabar a qualquer momento. Sem contar as goteiras, que fazem chover dentro de casa. Por mais que tudo tenha sido limpo e organizado com muito esforço, ainda não foi o suficiente para deixar a casa como era antes.

Ela contou que a vistoria nunca foi lá. O que sabe é que no dia em que passaram na sua rua, visitando outras casas, ela não estava. E depois, nunca mais voltaram. E ela seguiu morando onde sempre morou, sem perspectivas de que isso mude. Dorilda até mostrou um papel que sua filha deixou com ela, para entregar caso alguém batesse à sua porta. Era um requerimento de vistoria protocolado na prefeitura em novembro passado.

O que “desapertou” Dorilda foram os R$ 5.100 que recebeu do governo federal, benefício aos afetados pela enchente. “Eu só ganhei uma sacola de bóia [cesta básica] e os R$ 5 mil”, disse. O resto foi de doação ou comprado aos poucos. O que a mantém é a pensão de seu esposo, já falecido. “É só o que eu tenho”. 

“Eu tenho vontade de sair daqui, mas ir pra onde?” - Dorilda da Silva, 88 anos

‘Perdi minha fala’

Foto: Beatriz Araujo/Terra

O que mais mudou pra dona Dorilda depois da enchente foi o sentimento, disse. “Eu perdi a minha fala, eu não podia falar. Eu perdi a noção de conversar”, relembra, indignada. Ao longo da nossa conversa, disse várias vezes também ter ficado mais esquecida. Ela diz que chegou a ir em médicos, ter feito consultas particulares e passado por diversos exames. Mas a resposta que obteve dos médicos era simples: “É só sentimento”.

Antes da enchente, ela conta que costurava, que era mais ativa. Depois, ela ainda fez trabalhos manuais, mas quando estava longe de sua casa. Fez pra distrair, “pra esquecer, se não eu não aguentava”. Agora, o que a entretem é a televisão. Teve que comprar uma nova, mas foi o jeito. “Se não, não tem nada”.

Dorilda já passou por muita coisa. Nasceu, se criou, casou e teve sua família no interior, na cidade de Candelária. Veio “pra cidade”, em Canoas, porque não estavam mais com terra para plantar. A família se mudou em busca de uma vida melhor.

Ela foi mãe de oito filhos, e criou todos “na barra do vestido”, enfrentando até fome. “Meus filhos são fortes”, disse, orgulhosa. Agora, passa parte do dia sozinha e, de noite, seus netos revezam para fazer companhia a ela. Cada dia um vem. E o que espera, é a morte.

“O último dia da vida. Eu sei que vai chegar”, disse, sem ter medo, e confiante na certeza da vida.

Canoas foi a cidade gaúcha que mais teve pessoas atingidas pela enchente em números absolutos: 157.829 – o que representa 45,4% da população. Também foi o município em que mais gente morreu, segundo os dados oficiais e atualizados: 31 dos 184 óbitos registrados. 

A reportagem solicitou dados sobre os perfis de gênero e idade das vítimas à Defesa Civil, bem como ao Instituto-Geral de Perícias (IGP), à Polícia Civil, ao Corpo de Bombeiros, à Secretaria de Segurança Pública e à assessoria de imprensa do Governo Estadual, mas não obteve resposta. Segundo a Defesa Civil, o órgão não fornece esses dados.

Bairro Mathias Velho, em Canoas, no Rio Grande do Sul, um anos após as enchentes
Bairro Mathias Velho, em Canoas, no Rio Grande do Sul, um anos após as enchentes
Foto: Beatriz Araujo/Terra

Quase metade dos endereços da cidade também foram atingidos: 175,5 de 76,6 mil (43,5%). Em Canoas, a destruição ainda se faz presente nos entulhos pela rua e na degradação das casas. É assim de ponta a ponta no bairro Mathias Velho. Tudo lembra aquele mês de março. Mesmo nos imóveis que se reergueram, as paredes pintadas com tinta nova contrastam com as marcas de água impregnadas nas casas ao redor. O asfalto não é mais preto. 

O Terra tentou obter o dado de quantas das casas de Canoas foram laudadas como comprometidas com o governo estadual e a prefeitura, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria. Canoas também não deu complementos sobre o processo de vistoria das casas na cidade, que teria impactado Dorilda. O espaço segue aberto. 

O que se sabe, conforme informações da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano (Sedur) do Rio Grande do Sul, é que mais de 20 mil laudos foram analisados e, dessas casas, 2.405 residências foram classificadas como destruídas em decorrência das enchentes em todo o Estado. No geral, as águas da enchente atingiram 537,9 mil endereços.

Com o laudo que indica que a casa está comprometida, familiares cadastrados no Cadastro Único (CadÚnico), por exemplo, puderam requerer auxílios como Aluguel Social, Estadia Solidária e políticas habitacionais de casas temporárias ou definitivas. O movimento por moradias aos afetados uniu esforços federais, estaduais e municipais. Mas, na prática, ainda há muitos desassistidos. 

E as casas prometidas, foram entregues?

De pronto, a resposta é simples: em um ano, não foi entregue nenhuma das 2.235 casas definitivas prometidas por parte do governo estadual, por meio do programa A Casa É Sua Calamidades, conforme apurado pelo Terra. O que chegou ao povo por meio do programa foram 362 casas temporárias – das 625 que foram compradas. 

Foto: Reprodução/Governo do Rio Grande do Sul/Joel Vargas/GVG

A “política habitacional de emergência”, que tem como amparo a lei 16.138 de 2024, conta com as modalidades de casas temporárias e casas definitivas. A demora, conforme explicou a secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab) à reportagem, se deu por diversos fatores. 

Isso porque os responsáveis por indicar os terrenos onde serão entregues as casas são os municípios em questão, que solicitaram as moradias ao Estado. Além disso, as cidades também têm que fazer o preparo desse terreno. O processo é complexo: com as cidades afetadas pela enchente, seus recursos estão escassos. Sem recursos, não conseguem dar andamento nos terrenos – que precisam de rede de esgoto, água, rede elétrica. Por conta disso, a partir deste mês de abril, segundo a pasta, o Estado está repassando verbas a municípios para auxiliar nesta questão de mão de obra e infraestrutura.

Só depois que o terreno está nas condições adequadas, precisando também estar fora da “mancha do alagamento”, que é quando entram com as casas. Com relação às casas definitivas, a previsão é que as primeiras sejam entregues no fim de maio – no caso, 24 casas em Santa Tereza e 35 em Encantado, onde as obras estão mais adiantadas.

Depois, as cidades que estão mais perto de receber as moradias são Estrela (20) e Lajeado (10), onde já foram assinadas as Ordens de Início dos Serviços (OIS). Outro destaque é Cruzeiro do Sul, onde a preparação de terrenos de três loteamentos estão “bem avançadas”. 

  • • Essas moradias fazem parte do que foi chamado de “lote 1” do programa, que promete 422 casas em 11 municípios. O investimento para essa fase é de R$ 58,7 milhões.
  • • Já no “lote 2”, a expectativa é que sejam entregues mais 1.816 casas, atendendo mais 29 municípios. No total, juntando os lotes, serão 2.238 moradias definitivas em 40 cidades. Mas, um ano após a tragédia, nenhuma foi entregue.

Segundo a Sehab, todas as cidades já estão selecionadas e já indicaram, previamente, onde será o lote para a construção das casas. Teoricamente, a partir da preparação do terreno, sob a responsabilidade das prefeituras, o prazo de entrega estabelecido para as casas é de 120 dias.

Em dezembro passado, o governo estadual tinha informado à reportagem que as construções em Encantado e Santa Tereza já haviam sido iniciadas e que o prazo da entrega era 20 de janeiro – ou seja, a entrega dessas primeiras moradias segue atrasada.

Em Canoas, especificamente, o governo do Estado informou que o município solicitou 50 casas definitivas, e segue no processo de adequação do terreno. Lá, também serão construídas 58 casas temporárias – que também não foram entregues, pois o terreno precisa complementar a estrutura das redes elétricas e de esgoto.

E as casas temporárias?

  • • No total, foram adquiridas 625 casas temporárias, que possuem 27 m² e são compostas por um dormitório, sala e cozinha conjugadas e banheiro. Desse total, 362 já foram entregues a famílias de sete cidades. O restante, 263, segue pendente – e serão direcionadas a Porto Alegre (80), Canoas (58), Eldorado do Sul (105) e Rio Pardo (20). Ainda faltam 125 serem instaladas nos terrenos.

  • • De acordo com a pasta de Habitação, essas casas temporárias não serão desmontadas. Sendo assim, conforme forem desocupadas, serão higienizadas e ficarão guardadas para serem reaproveitadas como abrigos em casos de futuros eventos extremos como o de maio passado. O investimento é de R$ 83,3 milhões.

Imóveis do programa estadual 'A Casa é Sua - Calamidade - Moradias Temporárias'
Imóveis do programa estadual 'A Casa é Sua - Calamidade - Moradias Temporárias'
Foto: Reprodução/Governo do Rio Grande do Sul/Joel Vargas/GVG

Outras frentes de moradia

Em outubro passado, o governo estadual lançou o Porta de Entrada, para abranger a "população com condições de arcar com financiamento habitacional, mas que não dispõem do valor da entrada para a aquisição da casa própria”. Ou seja, quem tem renda acima de 5 salários mínimos.

Nesse caso, será concedido um subsídio de R$ 20 mil para 6 mil contratos, como parte da primeira fase do programa. Até a publicação desta matéria, já foram realizadas 5.834 pré-vendas e 4 mil pessoas foram aprovadas com os Certificados de Concessão de Benefício (CCS). 

Aprovadas, no caso, significa que estão habilitadas para receber os R$ 20 mil. Elas não o recebem em mãos, pois é um recurso passado diretamente para a Caixa Econômica Federal, em nome do beneficiário. O Terra perguntou quantas pessoas já conseguiram entrar em suas casas novas por meio do Porta de Entrada, mas não teve acesso a esse dado. O investimento total na ação é de R$ 120 milhões.

Vista de Canoas, no Rio Grande do Sul, com as ruas tomadas pelas águas. Registro de 6 de maio de 2024
Vista de Canoas, no Rio Grande do Sul, com as ruas tomadas pelas águas. Registro de 6 de maio de 2024
Foto: Reprodução/REUTERS/Amanda Perobelli

O programa é similar ao federal, Minha Casa Minha Vida (MCMV) - Reconstrução, com esforços específicos voltados a famílias que tiveram a unidade habitacional destruída ou interditada definitivamente por causa da tragédia no Rio Grande do Sul. Nesse caso, é preciso que as famílias sigam uma série de critérios, como ter renda dentro da faixa 1 e 2, e cadastro no CadÚnico.

De acordo com o governo federal, por meio do Ministério das Cidades, o MCMV Reconstrução conta com uma frente a curto prazo, e outra de médio prazo. A Compra Assistida, que é similar à iniciativa Estadual, faz parte da estratégia de curto prazo e garante que famílias escolham uma moradia nova ou usada de até R$ 200 mil em qualquer município do Rio Grande do Sul. Nesse caso, as moradias são totalmente subsidiadas – ou seja, os moradores ganham o imóvel. 

Pessoas resgatadas de enchentes em Canoas, no Rio Grande do Sul. O registro é de 5 de maio de 2024
Pessoas resgatadas de enchentes em Canoas, no Rio Grande do Sul. O registro é de 5 de maio de 2024
Foto: Reprodução/Reuters/Amanda Perobelli

O Ministério das Cidades recebeu das prefeituras 14.647 nomes de famílias impactadas e, dessas, 7.356 foram habilitadas para o MCMV – Reconstrução.

Até o momento, pelo Compra Assistida, 1.500 famílias estão contempladas. Destas, mil foram na capital, Porto Alegre. Ainda de acordo com informações do ministério de Cidades, cerca de 600 outras unidades estão em contratação para famílias e há em torno de outras 2,2 mil unidades disponíveis para escolha de famílias habilitadas.

Já a estratégia de médio prazo do governo federal é referente à construção de novas moradias – “voltadas para caso as famílias não consigam, por qualquer razão, obter uma moradia que atenda às suas necessidades por intermédio da Compra Assistida", segundo o governo. O programa funciona, nesse caso, nos mesmos moldes e exigências do Minha Casa, Minha Vida convencional. 

Até o momento, nenhuma casa dessa modalidade foi entregue. Mas foram viabilizados:

  •  • 11.500 novas moradias em empreendimentos em áreas urbanas: 2.850 unidades já autorizadas para contratação em 4 empreendimentos em Canoas e Porto Alegre;
  • • 2.000 casas em áreas rurais;
  • • 1.332 moradias para municípios com menor número de casas destruídas: todas já contratadas em 36 municípios.

Em outra frente ampla, o Ministério das Cidades entregou em agosto de 2024 moradias para 367 famílias, a partir da celebração do Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), entre ministério, Caixa Econômica Federal, Ministério Público Federal, entidades e prefeitura. Não foi confirmado em quais cidades.

Um ano da enchente

Registro da cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, no dia 5 de maio de 2024
Registro da cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, no dia 5 de maio de 2024
Foto: Reprodução/REUTERS/Amanda Perobelli

Além de Canoas, 417 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul declararam estado de calamidade ou de emergência em maio passado por causa das enchentes. Entre as cidades mais afetadas também estão Porto Alegre (125.274 atingidos), São Leopoldo (90.371), Rio Grande (70.930), Pelotas (49.795), Eldorado do Sul (32.509), Guaíba (31.175), Novo Hamburgo (29.161), Alvorada (25.825), Esteio (19.970) e Igrejinha (16.683).

Já considerando a porcentagem da população atingida, as cidades mais afetadas no Rio Grande do Sul pela enchente foram Eldorado do Sul (82,2% da população), Muçum (79,1%), Roca Sales (54,55), Arambaré (51,9%), Travesseiro (51%), Igrejinha (50,9%), Colinas (49,6%), Arroio do Meio (48,2%), Marques de Souza (45,5%), Canoas (45,4%), São Sebastião do Caí (41,7%) e São Leopoldo (41,6%).

No total, em todo o estado, 970.788 pessoas foram atingidas pela enchente. Quantidade superior à de estados brasileiros como o Acre, Amapá e Roraima, que possuem menos de 1 milhão de habitantes. É como se a enchente tivesse devastado todo um estado.

Para que não se repita

Em pedido feito há mais de dez dias, o Terra solicitou detalhes a Canoas sobre os fatores que potencializaram a enchente na cidade, sobre os alertas emitidos aos moradores, assim como quais estão sendo os planejamentos adotados pela cidade para que a situação não se repita. Até a publicação desta matéria, a prefeitura não forneceu essas respostas. O espaço segue aberto.

*A repórter viajou para o Rio Grande do Sul à convite do Instituto Ideias de Futuro (https://institutoidf.org/).

** A série de reportagens O Peso da Água contou com a edição e coordenação de Aline Küller e Larissa Leiros Baroni

Fonte: Redação Terra
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