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Atentado em Moscou: BBC verifica acusações contra a Ucrânia

Por meio da análise de declarações de autoridades russas, reportagens da imprensa e postagens nas redes sociais, a equipe da BBC Verify investigou como se desenrolou a campanha para culpar Kiev.

26 mar 2024 - 15h57
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Homem com a cabeça baixa coberta pelo capuz do casaco
Homem com a cabeça baixa coberta pelo capuz do casaco
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O presidente russo, Vladimir Putin, reconheceu que "islâmicos radicais" foram responsáveis pelo ataque a uma casa de shows nos arredores de Moscou, que deixou pelo menos 139 mortos na última sexta-feira (22/3).

Mas apesar de o grupo extremista autodenominado Estado Islâmico ter reivindicado a autoria do atentado, Putin continua a insistir que a Ucrânia estava envolvida.

Por meio da análise de declarações de autoridades russas, reportagens da imprensa e postagens nas redes sociais, a equipe da BBC Verify investigou como se desenrolou a campanha para culpar Kiev.

Primeiras acusações

As acusações foram feitas quase imediatamente após as primeiras notícias do ataque à casa de espetáculos Crocus City Hall terem surgido nas redes sociais às 14h15 (horário de Brasília) de sexta-feira.

Vários blogueiros pró-Kremlin e algumas autoridades que postaram no aplicativo de mensagens Telegram começaram a culpar a Ucrânia pouco mais de uma hora depois.

O analista pró-Rússia Sergey Markov, por exemplo, disse às 15h25 que os autores do ataque pareciam "radicais islâmicos", mas acrescentou (sem apresentar provas) que o atentado "provavelmente havia sido organizado a partir de Kiev".

Cerca de 40 minutos depois, às 16h03, o tabloide nacional Moskovsky Komsomolets citou uma aspa do especialista militar Roman Shkurlatov, afirmando que o ataque poderia ter sido organizado com o apoio da inteligência militar e do Serviço de Segurança da Ucrânia.

E, às 16h27, o ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, prometeu vingança se a Ucrânia estivesse envolvida.

A falsa acusação de responsabilidade

Poucas horas depois, às 19h13, a NTV — um dos principais canais de TV da Rússia — exibiu um vídeo, alegando que mostrava uma autoridade da Ucrânia confirmando o envolvimento de seu país no ataque.

No vídeo, Oleksiy Danilov parece dizer: "Está divertido em Moscou hoje, acho muito divertido. Quero acreditar que vamos proporcionar tamanha diversão para eles com mais frequência".

Mas a BBC Verify concluiu que o vídeo é, na verdade, uma edição de duas entrevistas transmitidas na TV ucraniana na semana passada.

A BBC Verify concluiu que o vídeo transmitido pela NTV é, na verdade, uma edição de duas entrevistas à TV ucraniana
A BBC Verify concluiu que o vídeo transmitido pela NTV é, na verdade, uma edição de duas entrevistas à TV ucraniana
Foto: NTV / BBC News Brasil

Ambas podem ser encontradas no YouTube. A primeira é uma entrevista com Danilov datada de 19 de março.

A outra foi publicada três dias antes do atentado — e apresenta o chefe da inteligência militar da Ucrânia, Kyrylo Budanov.

A fala de Danilov que aparece no vídeo da NTV não está na entrevista original.

A análise de áudio, realizada para a BBC Verify pelo grupo de pesquisa Tecnologia Forense Avançada, da Liverpool John Moores University, no Reino Unido, indica que o áudio foi manipulado no vídeo da NTV.

Um intervalo nos dados de frequência do áudio indica que o som foi editado. No entanto, os pesquisadores não podem ter certeza de que a voz foi gerada por inteligência artificial.

A equipe da BBC Verify também encontrou informações incorporadas no arquivo de áudio, sugerindo que o mesmo foi submetido a um software de edição.

'Janela' para cruzar a fronteira

Putin disse que os suspeitos foram capturados enquanto tentavam fugir para a Ucrânia
Putin disse que os suspeitos foram capturados enquanto tentavam fugir para a Ucrânia
Foto: GETTY IMAGES / BBC News Brasil

Uma acusação oficial foi feita no discurso de Vladimir Putin no sábado (23/3).

O presidente russo afirmou que os autores do ataque foram capturados enquanto tentavam fugir para a Ucrânia, onde "foi preparada uma janela para eles cruzarem a fronteira".

A Rússia não apresentou, no entanto, evidências de uma "janela" que permitisse a passagem dos suspeitos.

Embora a BBC Verify não possa confirmar de forma independente para onde os suspeitos estavam indo, nossa equipe verificou vários vídeos e fotos deles sendo detidos. E apesar da alegação de Putin, as prisões ocorreram bem longe da fronteira com a Ucrânia.

Ao comparar os detalhes do fundo em seu entorno, sabemos que dois dos suspeitos detidos foram filmados a cerca de 145 km da fronteira com a Ucrânia.

Enquanto a Ucrânia nega qualquer envolvimento no atentado, o Estado Islâmico assumiu a responsabilidade pelo ataque por meio da sua autoproclamada agência de notícias Amaq.

As evidências visuais, divulgadas pelo grupo extremista, incluem a imagem de quatro atiradores com os rostos borrados, e um vídeo com cenas fortes do ataque filmado a partir da perspectiva de um deles.

Vários detalhes — como características da casa de shows e das armas usadas pelos atiradores — correspondem aos vídeos que surgiram online do momento do atentado.

Mas apesar das evidências, a Rússia continua a acusar a Ucrânia.

Margarita Simonyan, editora-chefe da rede de TV russa RT (anteriormente conhecida como Russia Today), disse no X (antigo Twitter) que os atiradores não eram do Estado Islâmico porque não estavam usando coletes suicidas — e "não tinham intenção de morrer".

Mas embora o grupo extremista tenha repetidamente alertado autores de ataques para não serem capturados vivos, atiradores do grupo já escaparam antes.

Por exemplo, no fim de 2022, um dos combatentes envolvidos no ataque a um hotel em Cabul conseguiu fugir — e mais tarde realizou um ataque suicida, de acordo com os meios de comunicação do Estado Islâmico, observados pela BBC Monitoring.

O que sabemos sobre os suspeitos?

Os suspeitos dirigiam um Renault branco — que corresponde ao veículo usado para fugir da casa de shows, visto em um vídeo separado — antes de serem detidos.

De acordo com o deputado Alexander Khinshtein, um homem foi preso perto do veículo, enquanto os outros três fugiram para uma floresta próxima — e foram detidos após uma busca.

Armas e passaportes do Tajiquistão foram encontrados dentro do Renault, acrescentou Khinshtein.

No domingo (24/3), foram publicadas imagens dos suspeitos sendo escoltados até um tribunal de Moscou. Eles foram identificados pelas autoridades russas como: Dalerdzhon Mirzoyev, Saidakrami Murodali Rachabalizoda, Shamsidin Fariduni e Muhammadsobir Fayzov.

O Estado Islâmico divulgou um vídeo mostrando os quatro supostos atiradores com os rostos borrados
O Estado Islâmico divulgou um vídeo mostrando os quatro supostos atiradores com os rostos borrados
Foto: BBC News Brasil

Na imagem divulgada pelo Estado Islâmico, três dos suspeitos aparecem usando uma camiseta marrom clara, uma camiseta verde clara e uma camisa polo cinza.

Estas camisas parecem corresponder às usadas por três dos suspeitos no momento da prisão.

Por exemplo, duas logomarcas presentes na camiseta marrom clara usada pelo suspeito identificado como Rachabalizoda também são visíveis no vídeo divulgado pelo Estado Islâmico. Ele também se identifica com o mesmo nome durante um interrogatório subsequente.

Já o suspeito Mirzoyev, cuja camisa não aparece na imagem do Estado Islâmico, foi detido vestindo uma camisa verde de manga comprida, jeans e cinto preto. Essas três peças de roupa são usadas por um atirador no vídeo do Estado Islâmico.

A reivindicação de autoria pelo Estado Islâmico é confiável?

A existência de um vídeo gravado pelos atiradores durante a execução dos assassinatos, a utilização de slogans comuns entre os membros do Estado Islâmico no vídeo, e a divulgação do mesmo por meio dos canais de comunicação oficiais do grupo extremista, são consistentes com o modus operandi do grupo.

Uma imagem de um dos atiradores dentro do Crocus City Hall, mais de duas semanas antes do ataque, foi publicada pela mídia russa — indicando que o atentado havia sido planejado com bastante antecedência.

O Estado Islâmico muitas vezes aguarda uma confirmação sobre o destino dos autores de ataques antes de assumir sua responsabilidade. Se um agressor morre, isso impede que as agências de inteligência extraiam informações sob interrogatório ou tortura.

Portanto, a reivindicação da autoria do atentado enquanto os atiradores ainda estavam foragidos é incomum — e indica o interesse por parte do Estado Islâmico em confirmar seu papel.

Esta não é a primeira vez que o grupo extremista tem como alvo a Rússia. Dois outros grandes ataques ocorreram em 2015 e 2018, junto a outros atentados de menor porte nos últimos anos.

* Reportagem adicional de Mina Al-Lami, Benedict Garman e Adam Robinson.

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