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Quando ensinar finanças entra na conta

Sustentabilidade e ética também cabem na educação financeira; segundo a BNCC, abordagem deve incluir aspectos culturais e psicológicos

19 out 2020 - 05h10
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Em um momento de crise econômica, questões ligadas à educação financeira têm se mostrado urgentes. Mas não é de hoje que as escolas começaram a incluir o tema em seus currículos. Com a sociedade buscando cada vez mais colégios que preparem os estudantes não apenas para provas e vestibulares, mas também para a vida, tem crescido o espaço que as instituições dão à temática.

Faz quatro anos que o Colégio Franciscano Pio XII decidiu tratar do assunto na disciplina Prevenção e Cidadania, que aborda sobretudo questões socioemocionais. "A gente queria entrar na educação financeira pela cidadania e pela sustentabilidade", conta Patrícia Heidrich Prado, psicóloga e docente responsável pelo tema na escola. Estudantes que passam por esses aprendizados podem ter mais facilidade para ter uma vida financeira saudável no futuro, mas há consequências imediatas. "O principal é aprender a gerir o dinheiro próprio, a mesada, e fazer economia. A gente discute muito sobre compra por desejo ou por necessidade, por exemplo", cita.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que norteia conteúdos e habilidades que as escolas do Brasil devem desenvolver ano a ano, inclui educação financeira como uma "temática interdisciplinar". Fica, assim, ao lado de conteúdos como educação para o trânsito e para a saúde e direitos da criança e do adolescente. O texto diz que devem ser consideradas "as dimensões culturais, sociais, políticas e psicológicas, além da econômica, sobre as questões de consumo, trabalho e dinheiro". Cita como exemplo um projeto de trabalho dentro da disciplina de História, tratando do dinheiro e de sua função na sociedade, da relação entre dinheiro e tempo.

Apesar de constar no trecho introdutório da BNCC como tema transversal, a educação financeira pouco aparece nos objetivos específicos elencados ano a ano. E, quando aparece, está concentrada dentro da Matemática. Fica restrita a operações como cálculo de porcentagens e de juros. Fora da Matemática, é citada em Português sobre leitura e compreensão de contas de consumo. Sem esse detalhamento, fica mesmo a cargo das escolas e de sistemas de ensino incluírem a educação financeira nos currículos de forma mais consistente.

"Embora haja esse documento, a temática ser incluída de fato demanda certa vontade política", diz Claudia Forte, superintendente da Associação de Educação Financeira (AEF-Brasil). Ela defende que a temática na escola inclua sempre a preocupação com o consumo consciente e tenha uma ligação com o cotidiano. "A criança não pode ser alijada da discussão sobre o dinheiro. Quando ocorre na escola, estimula também a participação em casa. Os mais novos podem participar do planejamento das férias, saber que o papai perdeu emprego e precisamos repensar os gastos."

Processo

Segundo Claudia, o alto nível de endividamento do Brasil, nas mais diversas classes sociais, é um prova de quanto as escolas ainda têm trabalho pela frente. Mas é preciso ter paciência e persistência. "Ninguém aprende em três meses a falar inglês. Na educação financeira é a mesma. Por isso, quanto mais cedo a gente tratar dessas questões com as crianças, mais mudanças podemos provocar."

A superintendente da AEF-Brasil ressalta ainda que a educação financeira é uma importante ferramenta anticorrupção. "Os programas precisam enfatizar os princípio éticos. A educação financeira não é para enriquecer, é para mostrar os caminhos legais e responsáveis para que cada um realize seu projeto de vida", afirma.

Tratada de forma ampla, a educação financeira pode ajudar as crianças a desenvolverem uma série de habilidades comportamentais e cognitivas. "Não se trata só de administrar o salário que se ganha. A educação financeira trata de comportamento e desenvolve uma série de competências. Ensina a lidar com a ansiedade, a se organizar, a planejar", garante Claudia.

A Matemática, é claro, contribui para a compreensão da educação financeira. Mas a educação financeira também tem muito a colaborar com a Matemática, ajudando a aproximar do estudante conceitos mais abstratos, defende Luciano Arantes, professor de Matemática do Adventista. A partir do 8.º ano, até o 1.º do ensino médio, os alunos têm de estudar porcentagem e juros simples e compostos. "O desafio do professor de Matemática é mostrar mesmo para aqueles que não gostam da matéria que são capazes, que vão usar o que aprendem na vida", afirma Arantes.

Investidores

O assunto desperta o interesse porque os adolescentes percebem como esse conhecimento tem o poder de afetar suas realidades. "Eles gostam principalmente quando incluo contextos do cotidiano. Por exemplo: o aumento dos itens de alimentação, prestação a curto e longo prazo, descontos à vista e aplicações financeiras. E muitos se interessam em saber a dinâmica do mercado financeiro", cita o professor. Assim, Arantes sempre passa exercícios de cálculo de aplicações mais rentáveis, se é melhor investir a curto ou a longo prazo.

Mesmo sendo mais novo que os alunos de Arantes, Francesco Korte se interessou tanto pelas aulas de Educação Financeira que teve no ano passado, quando estava no 6.º ano do Pio XII, que decidiu investir um dinheiro que havia ganho de presente da família. "Estava em uma poupança e quis fazer o dinheiro trabalhar para mim", diz, mencionando um dos conceitos que ouviu na escola.

Com apenas 13 anos, a iniciativa surpreendeu os pais. E, depois da surpresa, levou a família a também investir. "Meus pais não são ligados nisso, foi mesmo por influência da escola. Eu pesquisei muito sobre fundos imobiliários, montei uma carteira e investi meu dinheiro lá. Meu pai me apoiou muito e confiou tanto em mim que separou um dinheiro dele e fez um investimento igual ao meu", conta o jovem investidor.

PARA ENTENDER — É matemática financeira? Não

A matemática financeira é importante, mas apenas uma pequena parte da educação financeira. Conceitos de Matemática - por exemplo, fração, regra de três e porcentagem - são indispensáveis para entender alguns fenômenos ligados ao mundo financeiro. As ferramentas da disciplina precisam ser usadas para que os estudantes consigam calcular valores ligados ao mundo real, como parcelas, multas e taxas de juros e de desconto. Pela complexidade desses temas, eles costumam estar presentes nos currículos dos anos finais do ensino fundamental e também no médio.

A educação financeira tem uma abordagem mais ampla, que vai além da Matemática em si, pois inclui questões de comportamento de consumo - por exemplo, por que gastar ou economizar, como fazê-lo. A temática pode trazer ainda elementos como a história do dinheiro, a ética das transações financeiras e até o meio ambiente. Em geral, é trabalhada desde o início do ensino fundamental, mas há metodologias que preveem as primeiras lições ainda na educação infantil.

BOAS PRÁTICAS

  • Consumo consciente

A questão comportamental está na base da educação financeira; a escola deve levar os alunos a refletir sobre as razões que os levam a consumir - se é vontade ou necessidade -, evitando o impulso e o consumismo.

  • Meio ambiente

Não é apenas o dinheiro na conta que acaba; os recursos naturais do planeta também são finitos - e, para esses, não há de onde pegar empréstimo. Os mais novos podem aprender a ponderar os impactos do seu consumo no ambiente.

  • Atitude ética

A educação financeira deve ajudar a traçar e a atingir metas, mas sempre no caminho da lei e do respeito ao próximo. Um bom programa nessa área precisa ser anticorrupção.

Estadão
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