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Todo mundo tem uma história de Copa e a minha começa com Pelé

Copas do Mundo são como cápsulas do tempo, onde ficam guardadas algumas de nossas melhores memórias afetivas

9 dez 2022 - 09h23
(atualizado às 10h29)
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Pelé
Pelé
Foto: Reprodução/Facebook

A Copa do México, em 1970, foi um marco nos lares brasileiros. Pela primeira vez, os jogos do torneio foram transmitidos pela televisão aqui no Brasil. Era uma criança com 6 anos de idade, na época. Mas tenho uma memória muito viva da festa que eram os dias de jogos da seleção, quando os jogadores entravam em campo com a amarelinha. Quer dizer, nem tão amarelinha assim, já que as imagens que chegavam ao vivo do México eram em branco e preto. Não importava o adversário, a dureza do jogo, reinava uma certeza de que tudo ia terminar bem. Afinal, com uma seleção que tinha Pelé, não havia outro caminho senão a glória. Azar dos adversários. Quem tinha um rei em campo, tinha tudo.

Foi pela televisão que ocupava um lugar central sala de visitas do apartamento da Rua Senador Vergueiro, no carioca bairro do Flamengo, que minha família e eu vimos o Brasil de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson e cia despachar, primeiro, os sempre temidos times europeus, famosos na época por serem muito mais organizados taticamente do que os brasileiros. Eram também implacáveis quando se tratava de marcar Pelé no campo. Depois, foram os peruanos e uruguaios que cruzaram o nosso caminho, até a seleção brasileira chegar à final.

Meu pai gostava de deixar a televisão com o volume baixo. Quem comandava as transmissões das partidas na minha casa eram as vozes do locutor de rádio e a do meu pai também. De vez em quando, ele palpitava sobre o que os jogadores deveriam fazer no jogo e se antecipava à marcação do juiz. Dizia "offside", "corner" para se referir a impedimento e escanteio, respectivamente. Para alguém da geração dele, nascida algumas décadas depois dos ingleses terem organizado as regras deste esporte, era natural o uso de expressões em inglês.

O Brasil passou invicto por todos os adversários. Pelé marcou quatro gols e participou de jogadas antológicas. Como a assistência para Jairzinho, no jogo contra a Inglaterra, e a rolada de bola magistral para o capitão Carlos Alberto Torres consolidar a vitória contra a Itália por 4 a 1, na grande final. Um gol com a cara e a inteligência do futebol brasileiro, cheio de elementos que elevam à qualidade de arte. Ainda deveriam ter constado na súmula dos juízes do Mundial os famosos gols que Pelé não fez, só para não deixar um pingo de dúvida a quem, de fato, pertencia a coroa de rei. 

Em seis jogos disputados na Copa de 70, a seleção marcou 19 gols. Muito provavelmente, foi o número de vezes que vibrei junto com a minha família. Sem contar as idas à janela, na companhia dos meus irmãos, para gritar gol e esperar pela chuva de papel picado que flutuava no ar a cada vitória do Brasil. Instantes de pura magia e que são revividos por crianças ao redor do mundo, sempre que um craque faz a alegria de uma torcida.

Quando a seleção desembarcou vitoriosa no Brasil, os jogadores saíram pelas ruas do Rio de Janeiro, em cima de um caminhão do Corpo de Bombeiros. Por sorte, o trajeto incluía a Avenida Oswaldo Cruz, que passava bem atrás da minha casa. Deve ter sido ideia do meu pai levar a família para ver os tricampeões passarem. Da calçada, numa noite de junho, avistei brevemente os atletas que, em meio aos horrores dos anos de chumbo impostos pela ditadura militar, trouxeram um rasgo de esperança e alegria ao país.

Naquela época, não sabia que a Copa de 70 tinha sido uma espécie de redenção para Pelé. Tostão, o craque da icônica camisa 9 no México, escreveu, certa vez, que Pelé se preparou como nunca para o torneio. Se dependesse da vontade do rei, a história com a seleção brasileira teria terminado no Mundial de 1966, na Inglaterra, quando o Brasil foi eliminado na fase de grupos, perdendo para Portugal do atacante Eusébio, o maior nome do país até o surgimento de Cristiano Ronaldo. Foi um duro golpe em quem chegava a sua terceira Copa e, pela segunda vez, não tinha conseguido jogar todo torneio por causa de lesão. Depois de Suécia e Chile, Pelé queria ganhar na terra de Charles Miller, o inglês considerado o responsável por introduzir o futebol no Brasil. Mas não deu.

O eterno camisa 10 relembrou no documentário "Pelé" (Netflix, 2021), que seu retorno à seleção se deu, sobretudo, por causa dos recados que recebia dos políticos do período da ditadura de que deveria disputar sua quarta Copa, querendo ou não. Aos 29 anos, Pelé era um dos mais velhos do grupo. Ao chegar ao Estádio Azteca, para disputar a final contra a Itália, contou que viu os torcedores brasileiros chegando em massa para o jogo e não conseguiu controlar o choro. Eram lágrimas de quem sabia que um país inteiro contava com a sua genialidade. Depois da vitória contra a Itália, chorou novamente. Desta vez, de alívio.

Talvez tenha sido ali na Copa do México, mesmo sem saber verbalizar, que senti o significado de um bordão muito popular para definir o poder deste esporte: "não é só futebol". Muito mais do que torcer para um time, em tempos de Copa, são escritas histórias de afeto entre pais e filhos, de nações que momentaneamente se redimem de suas mazelas, de populações que encontram um mínimo de autoestima, mesmo no meio de um buraco sem fundo. Não à toa, vibramos quando seleções consideradas menos badaladas, despacham lindamente favoritos - desde que não seja a gente. No Catar, por exemplo, sempre teremos o Marrocos de Hakimi e do goleiro Yassine Bounou para relembrar com quantos pênaltis se escreve uma saga heróica.

Olhando pelo retrovisor, diria que Copas do Mundo são como uma unidade de tempo que ajudam a desenhar a timeline de nossas vidas. Ganhando ou perdendo, cada uma delas contribui para acrescentar algumas das memórias afetivas que habitam em nós. Não tenho dúvida de que, se houvesse uma cápsula do tempo, repleta de boas lembranças, na minha haveria um papel com o nome Pelé escrito. 

Fonte: Redação Nós
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