'Em dez anos, dinheiro em espécie deve desaparecer', diz autor do livro 'O Futuro do Dinheiro'
Eswar Prasad, ex-chefe da divisão de estudos financeiros do FMI, diz que o avanço do dinheiro digital vai praticamente acabar com o uso de cédulas de papel nas principais economias
A adoção de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, na sigla em inglês) das maiores economias do planeta, que poderá ocorrer em 5 anos, deve impor muitas dificuldades às divisas de mercados emergentes, pois correrão o sério risco de sofrerem um processo de dolarização ou euroização digital.
A avaliação é de Eswar Prasad, professor da Universidade Cornell e ex-chefe da divisão de estudos financeiros do Fundo Monetário Internacional (FMI). "Todos os mercados emergentes enfrentarão muito mais desafios quanto ao ingresso de capitais. A volatilidade da taxa de câmbio vai aumentar, o que poderá levar investidores no Brasil e na Índia a buscar ativos denominados em outras moedas fortes, como o euro e o dólar digital", diz, em entrevista exclusiva ao Estadão/Broadcast.
Na avaliação de Prasad, o avanço dos padrões monetários digitais tornará residual o uso do dinheiro em espécie no mundo no horizonte de 10 anos, o que é um dos temas do seu livro O Futuro do Dinheiro, que está na lista das melhores publicações de 2021 do Financial Times.
Para o acadêmico, não há o risco de um estouro de uma bolha de criptoativos impactar o sistema financeiro mundial no momento, pois a exposição de grandes instituições a estes ativos é limitada, embora destaque que o valor de capitalização já é imenso, próximo a US$ 2,46 trilhões. "Talvez a normalização das políticas monetárias de forma internacional, dado que as taxas de juros estão muito baixas, poderá levar investidores a deixarem este mercado." Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O senhor avalia que o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, no seu segundo mandato implementará regulações firmes sobre criptoativos e levará o Fed a criar o dólar digital?
Acredito que o presidente Powell e outras autoridades do Fed estão preocupados com as implicações dos criptoativos sobre a estabilidade dos mercados financeiros. Há uma especial atenção ao eventual uso destes ativos para atividades ilegais, como financiamento de terrorismo e lavagem de dinheiro. Eu espero que o Congresso adote muitas regulações nesta frente, embora a tecnologia associada aos criptoativos tragam alguns benefícios como melhorar o sistema de pagamentos de varejo e atacado nos Estados Unidos. Acredito que o Fed está se movendo de forma mais devagar do que outros bancos centrais sobre o tema, mas está na direção certa. Todos os BCs são conservadores e especialmente o Federal Reserve, devido à dominância do dólar no sistema financeiro internacional e por isso será mais resistente para adotar sua moeda digital. Esta é inclusive uma decisão que deve ser tomada pelo Congresso e pelo governo dos EUA, não pelo Fed.
O senhor não avalia que o presidente Joe Biden e o Congresso aprovarão a adoção do dólar digital neste mandato do chefe de Estado?
O Fed poderá realizar alguns experimentos limitados em relação ao dólar digital nos próximos dois ou três anos. Neste período, serão iniciados projetos mais avançados de CBDCs pela China, Suécia e Japão. Todos os principais bancos centrais devem começar entre três a cinco anos experimentos com suas respectivas moedas digitais, entre eles o BCE (Banco Central Europeu) e Banco da Inglaterra. O Fed será mais lento. Contudo, há uma observação sobre a cautela do Fed em adotar a sua CBDC. A China deve implementar o yuan digital de alguma forma em 2022 ou 2023 e a tecnologia do país asiático pode estabelecer o padrão para moedas digitais de outros países. A questão é saber se os EUA querem exercer um papel de liderança na determinação destes padrões tecnológicos ou se perderão terreno para a China. Nos próximos cinco anos, o uso de dinheiro em espécie pelo mundo vai diminuir de forma substancial e, em dez anos, acredito que será muito difícil imaginar que qualquer um de nós estará ainda utilizando cédulas de dinheiro.
Se o Fed e o BCE não criarem suas moedas digitais em cinco anos, haverá o risco de ocorrer um crescimento preocupante do mercado de criptoativos, que hoje já está ao redor de US$ 2,46 trilhões?
Isto é verdade. Quanto mais os bancos centrais demorarem para adotar as versões digitais das suas moedas mais os criptoativos poderão crescer e ganhar fatia de mercado em transações monetárias, inclusive com a criação de novos ativos que poderiam ter outras funções.
Não seria perigoso o avanço acelerado dos criptoativos para os bancos centrais, pois o aumento expressivo deste mercado poderia limitar a capacidade dos BCs para emitir dinheiro?
Sim. Mas penso que há várias boas razões porque os BCs são conservadores sobre o tema. Uma delas é que se eles se moverem de forma muito agressiva para emitir CBDCs poderão prover um sistema de pagamentos de baixo custo, o que seria maravilhoso para a inclusão financeira, mas pode coibir a inovação no sistema de pagamentos pelo setor privado. Outro fator é que a criação de contas em CBDCs para os cidadãos pode levar à desintermediação financeira. Um elemento adicional é que, com a redução do uso do dinheiro em espécie, poderemos viver em uma realidade na qual potencialmente todas as transações financeiras poderão ser controladas por um provedor privado de pagamentos ou por BCs, o que levanta legítimas considerações sobre privacidade das pessoas. Além disso, surgirá um período que será extremamente desafiador para muitos mercados emergentes, especialmente os que têm moedas e bancos centrais que não são críveis. Se houver um volume bastante disponível pelo mundo do dólar, euro, iene e yuan digitais, ou mesmo o Diem, a stablecoin do Mega, estas moedas poderão ter maior credibilidade do que as divisas de diversos emergentes, o que poderá gerar um reordenamento do sistema monetário internacional. Muitas moedas poderão ser substituídas pelas principais divisas que serão ainda mais prevalentes. Todos os mercados emergentes enfrentarão muito mais desafios quanto ao ingresso de capitais. A volatilidade da taxa de câmbio vai aumentar, o que poderá levar investidores no Brasil e na Índia a buscar ativos denominados em outras moedas fortes, como o euro e o dólar digital.
Neste cenário, a única saída para os mercados emergentes evitarem os riscos de dolarização ou euroização digital é terem políticas econômicas fortes e que geram inclusão social e crescimento?
Se um país não tem boas políticas macroeconômicas ele enfrentará desafios que poderão ser grandes. No passado, puderam ser adotados controles de capitais para proteger as moedas, mas em um mundo digital tais medidas serão muito mais difíceis para funcionar. Estes países devem ter atenção especial sobre as regulações dos criptoativos e stablecoins para atuar em suas jurisdições.
O avanço da digitalização proporcionará de forma indireta uma concentração de moedas pelo mundo.
Exato. No mundo das moedas digitais oficiais, veremos este fenômeno, que ocorrerá por causa de novas tecnologias com as quais algumas divisas serão ainda mais dominantes e muitas outras terão grandes ameaças às suas existências.
Quais são os principais riscos que os criptoativos impõem à estabilidade financeira mundial e o que as autoridades governamentais, especialmente nos EUA, deveriam fazer sobre o tema?
Há dois desafios que governantes e reguladores enfrentam: um deles é como obter os benefícios das tecnologias relacionadas aos criptoativos, como blockchain, sem passar por riscos adicionais que tais ativos podem provocar. Em segundo lugar, devem ser aplicadas as atuais regulações sobre os criptoativos ou deve ser criado um arcabouço regulatório totalmente novo para normatizá-los? Não há ainda boas respostas para tais dúvidas.
O senhor considera que há uma bolha de criptoativos? Como autoridades internacionais deveriam agir para conter expressivas correções deste mercado, o que poderia atingir o sistema financeiro, sobretudo grandes bancos que emprestam recursos para plataformas de negócios de cripto ativos, como Coinbase?
Há sim esta preocupação dado que o mercado de criptoativos já é imenso. Contudo, no momento, o risco não parece ser muito grande, dado que as tradicionais instituições financeiras não estão adotando imensas posições neste mercado, o que ocorre mais com investidores individuais.
Grandes instituições, como JP Morgan, Goldman Sachs e BlackRock, oferecem produtos financeiros relativos a criptoativos. Começa a ocorrer uma exposição do tradicional sistema financeiro aos criptoativos que pode crescer bem mais e ficar arriscada para a sua estabilidade?
As vezes eu observo criptoativos e pergunto para mim mesmo de onde vem este valor de mercado. No caso do Bitcoin, ele parece que ocorre devido à sua escassez, pois foram criadas 21 milhões de Bitcoins e 19 milhões já foram obtidas. Mas, no caso de outros criptoativos, o valor total deste mercado implica em vários riscos. Em relação aos grandes bancos, minha percepção é de que não estão tão expostos a criptoativos e atuam com empréstimos limitados a companhias deste setor. Caso ocorra uma forte correção dos criptoativos, não acredito que provocaria graves consequências para o mercados financeiros em geral na fase atual. É claro que, se o valor de mercado destes ativos aumentar cinco ou dez vezes, em pouco tempo os riscos de correção serão bem maiores. Talvez a normalização das políticas monetárias de forma internacional, dado que as taxas de juros estão muito baixas, poderá levar investidores a deixarem este mercado.
O senhor acredita que as CBDCs deveriam ter acesso restrito a quem reside no país de emissão ou poderiam ser acessíveis também pelas pessoas que vivem em outros países? O senhor defende um limite que cada cidadão pode ter de CBDCs em suas carteiras digitais para proteger os bancos comerciais?
Os bancos comerciais são muito importantes para os sistemas financeiros e eles enfrentam grandes desafios, como as fintechs e CBDCs. Há meios tecnológicos para limitar o acesso internacional de CBDCs. A China, por exemplo, já manifestou que o yuan digital não será negociado fora do país. No entanto, será uma tentação para a China empregar sua moeda digital como um meio internacional de pagamentos, especialmente para transações comerciais. As CBDCs dos principais países serão amplamente disponíveis pelo planeta e criarão vários desafios para diversas economias.
O senhor avalia que o modelo híbrido de CBDCs, emitidas pelos BCs e distribuídas pelos bancos comerciais, é a melhor solução para ter moedas digitais operando sem trazer o risco de destruição do sistema bancário?
Este é um bom modelo no qual os bancos centrais criam a infraestrutura de pagamentos e distribuem CBDCs na forma de tokens digitais, como hoje os BCs distribuem dinheiro em cédulas para os bancos comerciais. Este será um bom equilíbrio a fim de evitar a desintermediação financeira, mantendo a competição de provisões de pagamentos das instituições privadas.