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Série sobre rock latino mostra o quanto o Brasil perdeu por dar as costas aos vizinhos

Documentário 'Quebra Tudo', com seis episódios na Netflix, criou polêmica ao dar ao produtor Gustavo Santaolalla um peso, talvez, maior do que o merecido

17 jan 2021 - 05h10
(atualizado às 13h03)
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Às costas do Brasil, mas como se estivessem em outra galáxia, países da América Latina receberam o rock desde suas calças curtas, em 1957, a partir do encorajador fenômeno planetário em espanhol Ritchie 'La Bamba' Valens, e o transformaram em seu com poesia, fúria e personalidade. As duas primeiras qualidades o rock traz em seu DNA para se estabelecer em qualquer lugar do mundo. A terceira, não. Ou seja, antes mesmo de ser absorvido no Brasil com algum caráter particular, argentinos, mexicanos, uruguaios, peruanos e chilenos o usavam à sua forma, filtrado em suas tradições, como uma arma que não havia sido apontada da mesma forma nem em seus berços. Sem governos ditatoriais a combater nos Estados Unidos dos anos 50 ou na Inglaterra dos 60, o rock aprendeu a ser rock mesmo, de dimensões sociais coletivas e não apenas comportamentais, sob as rajadas das ditaduras latino-americanas.

Há muito mais conjecturas a se fazer depois dos reveladores seis episódios da série Quebra Tudo - A História do Rock na América Latina que a Netflix oferece desde janeiro. São quase 100 entrevistas, imagens de arquivo valiosas e, para os brasileiros, um deleite extra. Salvo nas passagens sobre artistas como o argentino Soda Stereo e o mexicano Café Tacuba, os colombianos Aterciopelados ou os também mexicanos superstars do Maná, que conseguiram de algum modo furar o bloqueio linguístico - o fator apontado como a principal causa do distanciamento industrial mantido dos hispânicos no lado português do continente - tudo é uma saborosa descoberta narrada sempre em paralelo aos tremores políticos provocados por presidentes ora assassinos, ora assassinados.

A festa dos hermanos não passou pelo Brasil por falta de interesse das gravadoras, que patrocinaram o intercâmbio continental em língua espanhola sem envolver o Brasil. A sensação, agora, pode ser de perda. O quanto perdemos longe do uruguaio Hugo Fattoruso, antes de ser quem se tornou, como roqueiro dos seminais Los Shakers e por não ouvirmos os argentinos do Joven Guardia (ninguém consegue dizer se foram ou não inspirados na Jovem Guarda brasileira) cantando El Extraño de Pelo Largo. De quanta poesia fomos privados sem os LPs do genial Luis Spinetta, líder do fabuloso grupo Almendra. Quanta energia deixamos de conhecer por não termos ouvido os discos do mexicano de Tijuana, Javier Bátiz, de vocal poderoso e dono de uma versão estupenda de The House of the Rising Sun. O homem que, depois de ser visto cantando na praça por um menininho de 5 anos chamado Carlos Santana, foi procurado pela mãe do futuro maior guitarrista de rock da língua espanhola no dia seguinte: "Por sua culpa, meu filho ficou sem dormir a noite toda!". E que história é essa do Woodstock mexicano realizado às margens do Lago Avándaro, em 1971, quando se esperavam 5 mil pessoas e apareceram - até onde conseguiram contar - algo como 250 mil. Como o rock, por seu potencial explosivo, foi proibido no México por oito anos? E de que forma a MTV Latina conseguiu unificar esse gigantesco bloco produtor de um som vigoroso e cheio de influências que iam da cumbia ao tango?

Seria um erro não incluir o Brasil em nenhum capítulo do documentário? "Eu morei em São Paulo por cinco anos e sei que o universo roqueiro de vocês é gigante. Seria preciso mais dez temporadas", diz ao Estado o diretor da série, Picky Talarico. Ele conta que pensou em fazer duas entrevistas, que acabaram não sendo levadas adiante: uma com Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, e outra com Caetano Veloso. Os Paralamas são uma exceção no proclamado autossuficiente rock brasileiro dos anos 80, considerados "a banda de rock brasileira mais argentina da história" desde que o piano de Charly Garcia, o herói portenho, apareceu na gravação de Quase Um Segundo, do álbum Bora Bora, de 1988. E Caetano por um ponto curioso: sobretudo os argentinos o percebem até hoje como um roqueiro, não como um cantor de MPB. E isso graças ao 3.º Festival da Música Popular Brasileira de 1967, quando cantou Alegria Alegria acompanhado pela banda de argentinos chamada Beat Boys, com Tony Osanah (guitarra e voz), Cacho Valdez (guitarra), Toyo (órgão), Willy Verdager (baixo) e Marcelo Frias (bateria). Os dois últimos estariam na base dos Secos & Molhados cinco anos depois.

"Mas a postura dele é roqueira. Aliás, foi a MPB de vocês que teve a atitude do rock nos anos 70", diz Talarico. E como o próprio Caetano considera o título de roqueiro latino-americano dado pelos argentinos? "Acho merecido pelas coisas que fizemos antes mesmo de argentinos, uruguaios, mexicanos ou chilenos. Cantei Alegria Alegria em 1967. Toda aquela atitude roqueira que fazia parte do tropicalismo foi aparecer só mais tarde em cantores argentinos ou mexicanos", diz ao Estado. Talvez se surpreenda se vir a série. Mas, instantes depois, ele manda outra mensagem com um complemento: "Eles (os produtores da série) deveriam falar é de Raul Seixas. Quando eu e Gil fazíamos, em 1964, shows no Teatro Vila Velha, de bossa nova, Raul fazia show de rock no Cine Roma, lotado!".

O argentino Gustavo Santaolalla, músico, produtor e compositor que levou dois Oscar pelas trilhas sonoras originais dos longas O Segredo de Brokeback Mountain (2005) e Babel (2006), aparece sendo entrevistado em vários momentos - um espectador desavisado pode terminar de assistir ao documentário o considerando, de fato, um gênio, já que sua figura é colocada como central em vários casos de sucesso de bandas e cenas. Mas fica mais estranho quando se percebe também que seu nome aparece nos créditos como produtor executivo. Não haveria, no mínimo, um conflito de interesses?

A checagem é feita com Billy Bond, músico e produtor argentino que hoje vive no Brasil e que liderou um supergrupo nos anos 70, em Buenos Aires, chamado La Pesada Del Rock and Roll, uma formação estelar com líderes de outros grupos, como Spinetta e Charly Garcia. Apesar de também aparecer como entrevistado, ele diz: "O erro desse documentário se chama Santaolalla. Ele mente, não participou de tudo o que diz". Procurado pela reportagem, Santaolalla não retornou aos pedidos de entrevista, mas o diretor Talarico falou a seu favor. "Ele disse que deveríamos tirar um pouco as partes em que aparecia, mas achei que, por sua importância, precisava ficar mais tempo." Alguns memes não perdoaram o centralismo de Santaolalla e passaram a fazer montagens com o rosto do produtor ao lado de frases como "no dia em que nasci, nasceu o rock latino" e "sem a minha música a vida seria um erro".

Estadão
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