Antonio Pitanga e filhos estreiam 'Malês', filme sobre o maior levante de escravizados no Brasil
Cineasta finalmente materializa uma ideia que tinha há mais de três décadas; Rocco e Camila Pitanga atuam no filme, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 2
Há histórias que habitam o corpo por décadas antes de encontrarem sua forma definitiva. Malês, o novo filme de Antonio Pitanga que estreia nesta quinta-feira, 2, é uma dessas narrativas que fermentaram na alma do cineasta muito antes de ganhar as telas. Aos 86 anos, o veterano finalmente materializa um projeto acalentado há três décadas: contar a Revolta dos Malês, o maior levante organizado por pessoas escravizadas na história do Brasil.
"Essa história já veio com o meu povo. Meu povo foi sequestrado, escravizado", diz Pitanga ao Estadão, lembrando como a narrativa chegou até ele através da oralidade familiar e dos ensinamentos de Mãe Menininha do Gantois, que o encorajou a buscar suas origens na África. "Essas histórias já vêm nos alaridos, na oralidade, provocando de que tribo eu vim, de que África eu vim. Não bastava ser afrodescendente".
Foi essa busca ancestral que levou Pitanga, logo após o fim da ditadura militar, a passar quase dois anos na África. As experiências naquele continente, somadas à sua formação no Cinema Novo, plantaram a semente de Malês - um filme que levaria décadas para florescer, mas que nunca saiu do horizonte do cineasta.
Uma jornada de resistência e amor
Ambientado na efervescente Salvador de 1835, Malês narra a trajetória de dois jovens muçulmanos que são arrancados de sua terra natal na África durante seu casamento e escravizados no Brasil. Separados pelo destino cruel, ambos lutam para sobreviver e se reencontrar, enquanto se envolvem na insurreição que mobilizou a população negra, escravizada e liberta, pelas ruas de Salvador.
A revolta, encabeçada por africanos muçulmanos chamados de malês, aconteceu no final do Ramadã de 1835. Após o fracasso da rebelião, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra os negros no Brasil se intensificou. O filme de Pitanga, entretanto, não se detém apenas no aspecto trágico da história.
"Eu pude desvendar uma história que estava na escuridão e levar à luz, revelar a beleza - não de negros oprimidos, de negros vítimas, mas revelar uma história de negros que detinham a sapiência, o conhecimento", explica o diretor. O filme apresenta africanos de diferentes nações que se organizaram com inteligência estratégica, criando uma coalizão que antecipava, em pleno século 19, ideais democráticos que ainda buscamos consolidar.
Cinema familiar e coletivo
Malês marca também um encontro geracional especial. Pitanga divide a tela e o processo criativo com seus filhos Rocco e Camila Pitanga, numa experiência que o veterano descreve como natural extensão de sua formação cinematográfica.
"A gente era envolvido com todas as áreas profissionais de um cinema. A gente queria aprender tudo", relembra, explicando como sua experiência multidisciplinar no Cinema Novo o preparou para dirigir, atuar e conduzir a família numa mesma produção.
Para Camila Pitanga, que interpreta Sabina no filme, Malês representa mais que um projeto artístico - é um chamado à ação para as novas gerações. "É para a gente acordar toda uma juventude que se deixou se sentir desengajada, se sentir sem perspectivas", reflete a atriz. "Se naquele momento, daquela tragédia que é a escravização, líderes malês entenderam que eram sujeitos do seu tempo, por que não a gente evocar isso agora, em 2025?"
A atriz destaca ainda a importância da coalizão retratada no filme. "Ali são líderes malês que entendem que precisam lançar mão de outras lideranças, de outros pontos de vista, de outras perspectivas, porque o negro não é 'o negro', 'a negra'. Nós somos pessoas que têm desejos, entendimentos, tempos muito distintos, mas que na diferença, na convivência dessa diferença, essa coalizão tem muita força".
Cinema brasileiro e identidade nacional
O lançamento de Malês em 2025 não é coincidência. O filme integra um movimento cinematográfico brasileiro que vem repensando nossa história e identidade nacional. Pitanga reconhece essa sincronia. "Faz um corpo maravilhoso, importante, que mostra um dos melhores momentos do cinema brasileiro, do cinema mundial", diz, citando filmes como Ainda Estou Aqui como obras irmãs dessa geração.
O filme, que teve sua pré-estreia no Festival do Rio em outubro de 2024, chega aos cinemas em 2025 carregando não apenas a força de uma história pouco contada, mas também a energia de um cinema que se recusa a aceitar narrativas incompletas sobre nossa formação nacional.
"É necessário contar uma história que a história não conta, que o povo brasileiro não conhece - a nossa própria história", resume Antonio Pitanga.