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George Eliot, a escritora cuja vida (e obra) escandalizou o século 19

Mary Ann Evans, mais conhecida pelo pseudônimo de George Eliot, foi tão revolucionária na vida pessoal quanto em seus romances.

13 set 2020 - 17h56
(atualizado em 14/9/2020 às 07h29)
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Mary Ann Evans, mais conhecida pelo pseudônimo de George Eliot, foi tão revolucionária na vida pessoal quanto em seus romances
Mary Ann Evans, mais conhecida pelo pseudônimo de George Eliot, foi tão revolucionária na vida pessoal quanto em seus romances
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Uma mulher sentada imersa na leitura, com o cabelo comprido caindo sobre os ombros, apoiando os pés em cima do braço da cadeira. Seja lá como você imagina George Eliot, provavelmente não é esta a imagem que vem à cabeça. Os poucos retratos existentes da romancista a enquadram em uma era muito distante da nossa, transmitindo uma sobriedade que corresponde à imagem reverenciada após sua morte em 1880.

Foi graças, em grande parte, a uma biografia escrita por seu consultor financeiro e, brevemente, marido, John Cross, que Eliot foi enaltecida postumamente como o que o biógrafo literário Lyndall Gordon chama de "anjo sábio", cuja sombra obscureceria por muito tempo os aspectos mais mundanos e radicais de sua trajetória e personalidade.

No entanto, para seu colega escritor William Hale White, com quem Eliot chegou a dividir a casa, ela era o tipo de mulher que não pensava duas vezes antes de adotar as poses menos vitorianas.

"Ela foi realmente uma das criaturas mais céticas e diferentes que eu já conheci", disse ele, descrevendo a maneira descontraída como Eliot se sentava e chamando-a de escritora "insurgente".

Mais de 200 anos depois do nascimento da autora, as impressões de White servem como um lembrete de que, embora seus romances sejam considerados essenciais até hoje, certos aspectos da vida de Eliot - seus desafios, escândalos e prazeres - transmitem uma sabedoria igualmente atemporal.

Na ficção, ela nos presenteou com personagens femininas inesquecíveis cujas agruras continuam a ensinar os leitores sobre ambição, amor e a importância de resistir às convenções; ao longo de sua vida, ela nos inspira a ousar compreender a felicidade, mesmo quando isso tem um preço, a permanecer fiel a nós mesmo e acreditar que nunca é tarde demais - além da importância de ter uma mente aberta.

Embora tenha abandonado os estudos aos 16 anos, Eliot usava a biblioteca da propriedade que seu pai administrava, o que a ajudou a ser autodidata
Embora tenha abandonado os estudos aos 16 anos, Eliot usava a biblioteca da propriedade que seu pai administrava, o que a ajudou a ser autodidata
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ao nascer em 22 de novembro de 1819, em Warwickshire, na Inglaterra, ela recebeu o nome de Mary Ann Evans. Era a caçula da família. Aos cinco anos, foi enviada para o colégio interno. E, após a morte da mãe, aos 16 anos, abandonou os estudos para cuidar da casa do pai - aos 21, se mudou com ele para Coventry.

Ele acreditava que a filha precisava se casar, mas ela acabou sendo acolhida pelo casal Charles e Cara Bray, cuja casa em Rosehill se tornara um centro de debates liberais e ideias radicais, frequentada entre outras pessoas por Ralph Waldo Emerson.

Com a amizade e o apoio do círculo de intelectuais de Rosehill, ela começou a ver um novo caminho se abrir, bem diferente daquele que foi educada a imaginar.

O ensino superior para as mulheres ainda estava décadas distante, mas a tradução era uma porta de entrada na sociedade intelectual, e ela começou a traduzir trabalhos de teologia liberal e escrever resenhas de livros.

Desafiando convenções

Em 1850, quando assinava 'Marian' Evans, ela se mudou para Londres, ficando hospedada na casa do editor John Chapman.

Algumas complicações se seguiram - ela teve um flerte, possivelmente algo mais, com Chapman, que já vivia em uma espécie de ménage-à-trois com a esposa e a governanta dos filhos.

Esta relação fadada ao fracasso foi seguida por outra, com o filósofo inglês Herbert Spencer, cujos trabalhos, incluindo Sistema de Filosofia Sintética, venderam juntos cerca de um milhão de cópias.

À medida que passavam cada vez mais tempo juntos platonicamente, Spencer temia que Eliot se apaixonasse por ele - pretensioso, talvez, mas foi exatamente isso que aconteceu.

Sabendo que ele nunca se sentiria da mesma maneira, ela todavia o pediu em casamento, esperando que sua companhia intelectual fosse suficiente. A coragem que isso demandou é comparada apenas à sua determinação subsequente - de uma vez desprezada, manter a amizade.

Por fim, ela acabou se apaixonando por outro escritor, George Henry Lewes. Refinado e famoso pela feiura, ele estava preso a um casamento com uma esposa que há muito tempo era amante de outro homem — e até criara os filhos dele.

No entanto, foi Eliot quem realmente escandalizou a sociedade quando decidiu conviver abertamente com Lewes, ainda casado. A mancha moral era tão forte que ela não podia se arriscar a ver amigas sem prejudicar a reputação delas por tabela.

A coragem dela não deve ser subestimada: sem a proteção legal do casamento, o risco de ser abandonada era grande.

Pelo que consta, era uma união harmoniosa e produtiva de mentes e temperamentos. A julgar pelos comentários feitos à artista Barbara Leigh Smith Bodichon, Eliot também estava bastante satisfeita com o aspecto físico do relacionamento. (Como a atriz americana Lena Dunham tuitou quando o verbete da autora foi lançado na Wikipedia em 2013: "Ela era feia e com tesão!")

Aquele período da vida de Eliot, em que ela era excluída socialmente, se tornou o mais produtivo. E é aprofundado no romance de estreia de Kathy O'Shaughnessy, In Love with George Eliot (Apaixonada por George Eliot, em tradução livre). O título é elucidativo. E a obra de Eliot tem um impacto intenso em seus fãs.

Como escreveu a jornalista nova-iorquina Rebecca Mead em seu livro de memórias, The Road to Middlemarch: My Life with George Eliot (O Caminho para Middlemarch: Minha Vida com George Eliot, em tradução livre), "há livros que parecem nos compreender tanto quanto nós os entendemos, ou até mais".

Desde que leu Middlemarch, livro de autoria de Eliot, na adolescência, Mead sentiu esse efeito. E foi a mesma sensação que despertou em O'Shaughnessy:

"Até hoje, me lembro de terminar com um namorado e me sentir péssima, muito sozinha, e da maneira como a voz de Eliot naquele livro me fez companhia. Senti que ela era compreensiva e solidária - como ninguém até então havia sido comigo."

Foi por meio da escrita que Eliot recuperou lentamente sua reputação. Em 1857, ela publicou sua primeira ficção na Blackwood's Magazine, usando o agora famoso pseudônimo masculino pelo qual é lembrada, e que permaneceria mesmo após seu disfarce ser descoberto.

Contradições

Assim, no ano em que completou 40 anos, publicou Adam Bede, seu primeiro romance e best-seller — do qual até a rainha Victoria era fã. A publicação foi seguida imediatamente por The Mill on the Floss, cuja protagonista, a inquieta e provocadora Maggie Tulliver, se tornou uma figura cultuada pelas mulheres na década de 1860 — entre elas, a poeta Emily Dickinson.

Para O'Shaughnessy, a vida e a obra de Eliot incorporam dois traços contraditórios: sua capacidade de pensar e agir por si mesma em um grau incomum e sua sensibilidade à opinião do mundo. Esta última característica se encaixa na explicação que Gordon evoca para a decisão de Eliot de ser chamada "Sra. Lewes".

Ela pode ter se rebelado contra a sociedade, mas ainda tinha uma necessidade muito humana de aceitação. A consciência dessa característica em si própria, por sua vez, alimentava uma aversão ao julgamento moral, que é o que O'Shaughnessy achou mais empático sobre Eliot quando começou a fazer pesquisas para seu próprio romance.

Uma das razões pelas quais Eliot adotou um pseudônimo foi para preservar sua vida privada da opinião pública – e também para garantir que seu trabalho fosse levado a sério
Uma das razões pelas quais Eliot adotou um pseudônimo foi para preservar sua vida privada da opinião pública – e também para garantir que seu trabalho fosse levado a sério
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Para mim, as raízes de suas histórias têm a ver com a necessidade fundamental de cada ser humano de tentar entender e ter empatia com outros seres humanos", diz ela.

É notável que Eliot pareça não ter se incomodado com o triângulo amoroso na casa de Chapman e que, como leitora de Charlotte Brontë, visse com maus olhos a recusa da personagem Jane Eyre em viver com Mr. Rochester enquanto sua esposa insana ainda estava viva.

Talvez não seja surpreendente que, após ter chocado a sociedade por não se casar com Lewes em 1880, ela tenha protagonizado um segundo escândalo (e intrigado futuros acadêmicos) — desta vez, ao se casar. Ela estava com 60 anos, e Lewes havia falecido há pouco mais de 18 meses. O marido, John Walter Cross, era seu amigo e consultor financeiro. Também era 20 anos mais novo.

Esse fato, associado a um incidente peculiar em sua lua de mel, quando Cross saltou da janela do hotel no Grande Canal de Veneza, deu origem a todo tipo de teorias lascivamente freudianas. Por fim, o casamento deles foi interrompido pela morte de Eliot em dezembro daquele ano.

Os romances de Eliot sempre serão sua maior realização, e permanecem independentes da paixão e da dor que os nutriu e marcou seus dias.

Mesmo assim, é impossível superestimar a tenacidade e coragem necessárias para que aquela menina provinciana se transformasse em uma intelectual de destaque — e isso em um momento em que a ambição feminina era tão limitada pelo gênero, sem contar com as dores de cabeça, a insegurança e a depressão que a atormentavam.

Sim, ela se tornou genial, mas em resposta a uma pergunta que mal começava a ser feita: o que uma mulher pode ser?

Havia contentamento em sua coragem também. Certa vez, ela garantiu a White que valia a pena aprender francês apenas para ler um livro, Confissões, de Jean-Jacques Rousseau. Como diz O´Shaughnessy, uma das lições mais importantes da vida de Eliot é esta:

"Manter nosso interesse no mundo e nas pessoas por meio do conhecimento, da leitura e do estudo, além da compreensão, da amizade e do amor".

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

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