Outros "Sais de Prata"
 

Filmes que falam de cinema

* Por Carlos Gerbase


"Sal de prata" é o meu décimo quarto filme, e o primeiro em que o mundo do cinema está em quadro. Fico me perguntando por que, agora, resolvi escrever uma história referente à minha própria profissão, e a resposta não é fácil. Talvez porque, depois de 20 anos fazendo filmes, eu tenha adquirido alguma autoridade para falar deles. Talvez porque o tempo que se leva para fazer um filme de verdade - "Tolerância" ficou pronto no final de 1999, há quase cinco anos - tenha me levado a criar cineastas de mentira, envolvidos com filmes de mentira (à medida que só existiam no roteiro: agora serão de verdade).

Talvez porque dou aula de cinema e estou sempre falando dele. Mas, quem sabe, a principal razão tenha sido a oportunidade de assistir nos últimos anos - em DVD - a alguns clássicos da metalinguagem cinematográfica, mania que começou casualmente, quando peguei "Crepúsculo dos deuses" na locadora. Assim, pensei em repartir com os leitores do nosso site a minha lista de filmes favoritos que falam de cinema. É uma lista parcial e pessoal, claro, com imperdoáveis lacunas.

Há um livro bacana - "O filme dentro do filme", de Ana Lúcia Andrade (Belo Horizonte: UFMG, 1999), que recomendo para quem deseja se aprofundar um pouco mais no tema, além de muitos títulos que podem ser importados. Minha intenção, aqui, é simplesmente compartilhar meu gosto e, eventualmente, proporcionar uma boa alternativa para aqueles dias em que a gente vai na locadora, os lançamentos já não estão nas prateleiras, e a sessão só vai existir se lembrarmos que o cinema tem mais de 100 anos e que esse passado tem muitas surpresas a oferecer. Então aí vai:

"CREPÚSCULO DOS DEUSES" ("SUNSET BOULEVARD"), de Billy Wilder, 1950
É, quem sabe, a maior obra-prima da metalinguagem cinematográfica, e uma das maiores da história do cinema, independente de gênero ou época. Wilder teve a coragem de retratar Hollywood com uma ironia ácida, corrosiva, e não poupou ninguém. Eric Von Stroheim e Gloria Swanson estão praticamente representando a si mesmos: um diretor e uma atriz que foram famosos na era cinema mudo, e que agora estão em queda livre para a obscuridade e a morte em vida. Quem não viu não sabe como o cinema pode ser um excelente tema para uma tragédia de valor universal.

"A NOITE AMERICANA" ("LA NUITE AMÉRICAINE"), de François Truffaut, 1973
Carinhoso, terno, sem ser piegas, o filme é uma declaração de amor ao cinema, que pode ser sintetizada com um diálogo maravilhoso da assistente de direção: "Eu poderia abandonar uma relação amorosa por um filme, mas jamais abandonaria um filme por uma relação amorosa." Truffaut demonstra que o cinema, por mais tecnológico e comercial que seja, ainda depende dos complicados e pouco confiáveis seres humanos para existir.

"BARTON FINK - DELÍRIOS DE HOLLYWOOD" ("BARTON FINK"), de Joel Coen, 1991
Os irmãos Coen são grandes mestres do cinema contemporâneo, e este é um dos seus melhores filmes. Recomendo a cena em que o roteirista interpretado por John Turturro contracena com o produtor do filme, na beira da piscina. É um filme difícil, tortuoso, às vezes até desagradável. Adjetivos que, às vezes, combinam muito bem com o mundo do cinema.

"CANTANDO NA CHUVA" ("SINGIN' IN THE RAIN"), de Stanley Donen e Gele Kelly, 1952
Outra obra-prima da história do cinema, que aborda o mesmo tema de "Crepúsculo dos deuses": o fim da era dos filmes mudos e o advento espetacular dos "talkies". Já vimos tantas vezes a cena de Kelly na chuva que, às vezes, esquecemos que o filme como um todo é genial. Do roteiro aos números de dança. Das interpretações à fotografia. Dos diálogos aos cenários.

"O ESTADO DAS COISAS" ("DER STAND DER DINGE"), de Wim Wenders, 1982
Uma equipe de cinema está em Portugal, filmando uma versão para um filme de Roger Corman. Quando o estoque de filme termina, as coisas se complicam. É um mais um filme existencialista que metalingüístico. Na verdade gosto bem mais de...

"COM O PASSAR DO TEMPO" ("IM LAUF DER ZEIT"), de Wim Wenders, 1976
Vi esse filme numa sessão na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, lá por 77 ou 78, e a impressão que tive (e que tenho até hoje) era de uma obra-prima. Um mecânico de projetores de cinema viaja pela Alemanha com um cara depressivo que acaba de se separar. Wenders estava no auge de sua transgressividade, o ator Rüdiger Vogler (do também ótimo "Alice nas cidades") era a cara do cinema alemão e alguns planos são inesquecíveis.

"O JOGADOR" ("THE PLAYER"), de Robert Altman, 1992
Um dos melhores filmes de Altman, grande especialista em roteiros com muitos personagens e muitas tramas paralelas. O roteiro privilegia as etapas de pré-produção de um filme (especialmente as relações roteirista-produtor), em vez das filmagens no set, o que o torna original.

"A MULHER DO TENENTE FRANCÊS" ("THE FRENCH LIUTENANT'S WOMAN", de Karel Reisz, 1981
Grande adaptação do genial romance homônimo de John Fowles. Dois planos narrativos paralelos - um "verdadeiro" e um "ficcional" - se misturam, e o resultado é muito legal.

"OITO E MEIO" ("8½)"), de Federico Fellini, 1963
Clássico do cinema italiano no início da década de 60, "Oito e meio" mostra Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale e Anouk Aimée, todos muito jovens e muito talentosos.

"A ROSA PÚRPURA DO CAIRO" ("THE PURPLE ROSE OF CAIRO"), de Woody Allen, 1985
Acho as interpretações de Mia Farrows e Jeff Daniels abaixo do padrão normal dos filmes de Allen. Mesmo assim, o filme resiste, e tem momentos maravilhosos.

"DIRIGINDO NO ESCURO" ("HOLLYWOOD ENDING"), de Woody Allen, 2002
Divertido e amargo. Allen faz um diretor que está com uma cegueira momentânea e precisa continuar fazendo seu filme. É quase "non-sense", tipo irmãos Marx.

"O DESPREZO" ("LE MÉPRIS"), de Jean-Luc Godard, 1963
Pra mim, Godard tem "apenas" duas obras-primas: esta e "Breathless". Só a Brigitte Bardot já valeria o ingresso (ou o custo da locação da fita). Mas há mais atrações espetaculares: Jack Palance como um produtor quase maluco e Fritz Lang interpretando a si mesmo. Godard pegou um romance de Alberto Moravia e o desconstruiu. Pode até ter alguns momentos meio chatos, mas compensa com cenas clássicas da "nouvelle-vague".

"O ÚLTIMO MAGNATA" ("THE LAST TYCOON"), de Elia Kazan, 1976
O personagem de Robert de Niro é um retrato não muito disfarçado de Irving Thalberg, um dos chefões de Hollywood, envolvido com roteiristas inexperientes e mulheres fatais, o que, como sabemos, é uma péssima combinação. O roteiro é de Harold Pinter e contém diálogos muito bons sobre o mundo do cinema.

"VIVENDO NO ABANDONO" ("LIVING IN OBLIVION"), de Tom DiCillo, 1995
Steve Busceni é um cineasta ultra-alternativo que precisa terminar seu filme, apesar dos esforços da sua equipe ultra-incompetente para estragar tudo. Comédia muito pouco vista, inclusive nos Estados Unidos, o que é uma injustiça histórica.

"QUANDO PARIS ALUCINA" ("PARIS, WHEN IT SIZZLES"), de Richard Quine, 1964
Transcrevo a coluna que escrevi sobre o filme para o ZAZ (hoje TERRA), em 1999

RAPIDINHO
Roteirista americano está em Paris há alguns meses para, supostamente, escrever o roteiro do filme "A garota que roubou a torre Eiffel" (cujo argumento é de sua autoria). Já recebeu um adiantamento, e o produtor aguarda, ansioso, o trabalho concluído. Só há um problema: o prazo de entrega se aproxima, e o roteirista ainda não escreveu uma linha sequer além do título, pois estava muito ocupado bebendo, namorando e passeando. Como ele resolve a situação? É muito simples - contrata uma linda datilógrafa. A relação entre o roteirista (William Holden) e a datilógrafa (Audrey Hepburn) é o mote para um roteiro divertido, que contém algumas cenas antológicas. Aliás, só estou escrevendo sobre o filme pela lembrança de uma dessas cenas.

AGORA COM MAIS CALMA
Poderia ser "A noite americana", de Truffaut. Poderia ser "O desprezo", de Godard, ou "O jogador", de Altman. Ou "O último magnata", de Elia Kazan, ou "Cantando na chuva", de Stanley Donen e Gene Kelly. Todos esses filmes são melhores e mais importantes que "Quando Paris alucina", que tem lá seus momentos de chatice. Mas eu queria escolher um filme que falasse sobre cinema com a mesma despreocupação com que eu escrevo sobre ele. Dizer que "Quando Paris alucina" é um clássico certamente é um exagero, pois é um filme de um diretor pouco conhecido, com problemas de ritmo e que não consta das milhares de listas de obras-primas do cinema.

É um filme comum, de estúdio, uma comédia feita para entreter as massas e ganhar dinheiro. O que não o impede de ser um retrato ao mesmo tempo engraçado e honesto dos mecanismos de Hollywwod. E não tenho medo de apontar uma de suas cenas como "clássica" para as pessoas que se dispõem a não só a consumir cinema, mas a entendê-lo.

Quando a datilógrafa pergunta em que pé está o trabalho (que deve ser entregue, impreterivelmente, dali a dois dias), o roteirista diz que só falta colocar no papel, pois já está pronto na sua cabeça. E começa a enfileirar páginas em branco, descrevendo uma ação imaginária que segue, passo a passo, os ensinamentos do "Manual do roteiro", de Syd Field, atual bíblia dos escritores de Hollywwod: descrição dos personagens e do cenário, seguida de conflito, seguida da "primeira virada", e daí por diante. É tudo muito divertido, e Audrey Hepburn (maravilhosa e extremamente sexy, apesar de só mostrar o pescoço e os tornozelos) logo está à mercê daquele sujeito fantástico, bêbado e fanfarrão, que tem a capacidade de transformam uma história, por mais besta que ela seja, num momento de emoção e catarse.

Quase tudo funciona: o elenco, a direção, a música, as participações especiais de Tony Curtis e Marlene Dietrich. As brincadeiras metalingüísticas é que são meio infantis e repetitivas. "Quando Paris alucina" é um filme inocente e despretensioso, realizado com uma leveza que Hollywood foi perdendo aos poucos, até se transformar nessa máquina pesada demais, comprometida demais, preocupada demais, em que o humor oscila entre o escatológico e o besteirol, com as exceções de sempre. É como se uma fábrica de salsichas, de repente, perdesse a receita da salsicha, e tivesse de enganar os fregueses com doses cavalares de mostarda e ketchup. Quine tinha a receita e sabia levá-la ao forno. É pena que o prato não tenha ficado perfeito, mas aquela cena do roteiro sendo estruturado, sozinha, amigos do ZAZ, vale o aluguel da fita na locadora.