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Contos proibidos do marquês de Sade

De
Philip Kaufman






RAPIDINHO
Serei mais rápido que o habitual: é um dos melhores filmes a que assisti na vida. Por várias razões, algumas de caráter pessoal, que tentarei manter longe deste texto, e outras absolutamente universais e demonstráveis, o que tentarei fazer a seguir, certamente com muito menos sucesso que a obra de Philip Kaufman.

AGORA COM MAIS CALMA
A grande questão do filme, superior aos personagens (bem desenhados e sólidos), muito superior à narrativa (competente e bem estruturada), é o tremendo choque entre o desejo de felicidade dos homens - Sade não está sozinho em sua voluptuosidade libertária - e a força dos que tentam manter o mundo seguro, sociável, regulado, contido, enfim, administrável, até que os sujeitos (todos os sujeitos) morram, de preferência sem grande alarde. É fundamental, no início do filme, o comentário sobre os revolucionários que, depois de mortos, continuam a causar problemas. As forças da segurança não podem torturá-los, nem matá-los, porque já estão mortos, e assim fica difícil administrar o condomínio dos ainda-não-mortos. Por isso, Sade vive mais um pouco. E ele quer escrever!
Sem nunca ser didático, sem nunca ser paternalista, mas claramente tomando uma posição, a única moralmente possível: ao lado de Sade, Kaufman construiu, cena após cena, um belo retrato de como nós vivemos. Nós? Claro! Se o filme fosse apenas sobre o Marquês de Sade não teria tanta graça. Nós somos Sade, nós somos o padre bonzinho, nós somos o médico-monstro, nós somos a lavadeira virgem, fascinada pelo desconhecido, com tanta vontade de viver e de amar que é capaz de desobedecer as regras e manter Sade produzindo, porque a sua ficção representa a vida, enquanto o hospício representa a morte. O amor dá forças misteriosas a quem ama. E depois cobra.
Sade, acusado de todos os males do mundo, grita: É apenas ficção. E é apenas ficção. Ficção sempre grosseira, quase sempre repetitiva. Para muitos, ficção baixa, chata, tão cheia de episódios criativos quanto um (mau) filme pornô. E existem bons filmes pornôs?, pergunta o leitor. Depende do seu espírito, caro leitor, respondo. O que é bom para você? O seu bom é o mesmo bom do médico (Caine) que tira uma menina de 16 anos do convento para, com a benção da sociedade e da Igreja, violentá-la, noite após noite? Então não existem bons filmes pornôs. São todos românticos demais.
Sade não usou, nunca quis usar, um certo filtro que as "belas-artes" costumam colocar sobre as representações dos nossos instintos. Charles Bukowski, mesmo em seus momentos mais bestiais, trabalha a sexualidade com o respeito de um humanista bêbado. Henry Miller, mesmo em suas confissões mais machistas e misóginas, está, na verdade, sempre fazendo uma ode ao amor. São artistas modernos, que lidam racionalmente com o mundo e com a sensibilidade de seus leitores. Sade, pelo menos o Sade de Kaufman, que é o único com quem convivi hoje à tarde, é mais primitivo, mais livre, instintivo, dionisíaco. Sade não usa filtro. Vocês querem café? Então engulam os grãos! Ou enfiem.
A única acusação possível ao filme é que Kaufman poderia ser mais sádico, no sentido primeiro do termo, isto é, mais explícito, mais hard-core, mas esta é uma acusação boba, porque Kaufman sabia que, com aquele orçamento e aquele elenco, o único filme possível seria um com filtro. Assim, não entrega ao espectador as imagens mais fortes do universo sádico, usando sempre as palavras para fazer uma mediação entre o conteúdo da obra e o público. Pasolini foi mais fundo, ao adaptar Os cento e vinte dias de Sodoma, mas o filme de Kaufman o ultrapassa , e muito, pela sua capacidade de superar a simples "exposição" do universo de Sade, para discuti-lo com o público. Kaufman pode até ser acusado de ser mais careta – e é mais careta! -, mas sua caretice tem grande qualidade, diverte, questiona, incomoda, enquanto os escândalos de Pasolini, hoje, apenas incomodam. Pasolini transou com Sade, mas Kaufman soube amá-lo.
Pasolini pode ter acreditado na filosofia de Sade e lutado por ela, o que é admirável. Kaufman desconfia da filosofia de um autor que – justamente por defender a absoluta ausência de moral – acaba sendo um espelho dessa moral e, de certo modo, a justifica. Desconfiar sempre é bom. E o primeiro a desconfiar foi o autor da peça original e do roteiro, Doug Wright (II). Ele, em seu primeiro trabalho para o cinema, fez o que muitos roteiristas tarimbados de Hollywood não conseguem fazer: manter a história "popular" e "comercial" sem abrir mão do essencial. Depois, basta ter um elenco excepcional – Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine – bem dirigido, e está feito o estrago.
Sade está mais vivo do que nunca. Nas lembranças de Charenton, nos seus livros e nas telas do cinema. Isso é velho e mais que conhecido. Mas Kaufman e Wright tiveram a bondade – ou a maldade, tanto faz - de nos lembrar do fato de que ele também está dentro de todos nós. E quer escrever! Maldito seja! Ele quer sempre escrever!

Contos Proibidos do Marquês de Sade (EUA, 2000). De Philip Kaufman


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Carlos Gerbase
é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para a Terra Networks (A Gente Ainda Nem Começou e Fausto). Em 2000, lançou seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

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