RAPIDINHO
Vamos
reconhecer preliminarmente: os atores estão razoavelmente bem
(apesar de Hopkins não atingir o nível de outros trabalhos),
a montagem é competente (o que dá ao filme um bom ritmo,
afugentando o sono) e Florença é uma bela cidade. Também
dá pra reconhecer: quem gosta de ver os personagens comendo pratos
exóticos enquanto mastiga sua pipoca bem crocante e salgadinha
talvez saia satisfeito. Talvez. Mas, falando sério, este Hannibal
é uma porcaria absoluta, perpetrada por um diretor absolutamente
equivocado em quase todos os aspectos narrativos e estéticos
do filme. É uma pena que a memória de O silêncio
dos inocentes, um dos melhores filmes da década de 90, esteja
sendo prejudicada por pessoas que só compreendem o cinema como
uma máquina registradora. Jodie Foster está de parabéns
por ter se recusado a participar. Em vez de 20 milhões de dólares,
ela ganhou o respeito de milhões de admiradores do bom cinema.
AGORA
COM MAIS CALMA
Foster
disse, em suas entrevistas, que a razão da recusa estava na excessiva
violência do filme. Duvido. Aposto que ela leu o roteiro final
(não o primeiro, de David Mammet, que, também aposto,
deve ser bem interessante), percebeu que aquela baboseira seria filmada
pelo senhor Ridley "Ventilador de Teto" Scottt e caiu fora
enquanto dava tempo. Como não podia falar mal do roteiro e do
diretor, falou da violência. Que existe, é mesmo de mau
gosto, mas que poderia funcionar dramaticamente nas mãos de um
realizador autoral, como Jonathan Demme. Foster fez Taxi Driver,
obra muito violenta de Scorcese. E obra-prima. Duvido que ela se arrependa
do que fez.
Os erros de
Hannibal começam no próprio enredo, baseado no
romance de Thomas Harris. Lecter, mesmo fora da lista dos dez mais procurados,
ainda é um criminoso notório, que nunca se exporia publicamente
sem alguns cuidados básicos, como alterar a fisionomia. O gênio
não deixa impressões digitais em
copos
de vinho, mas passeia nas ruas de Florença com sua cara de pau
de sempre e até assume cargos públicos! Essa história
está mal contada. E, na antologia "As coincidências
do cinema que nós amamos", dá pra incluir tranqüilamente
a cena em que Giancarlo Giannini vê, nas fitas de vídeo
do sistema de segurança da perfumaria, que estão sendo
copiadas na delegacia, a imagem de Lecter. Que sortudo! Digamos que
o material era de apenas uma semana (6 dias), e a perfumaria ficava
aberta apenas 8 horas por dia. Seriam 48 horas de imagens mudas sem
som. E ele estava lá nos dez segundos decisivos.
Mas as coincidências
são necessárias em quase todos os roteiros. Elas só
aparecem e incomodam quando as não-coincidências, ou seja,
todo o resto, não funciona. O drama profissional de Clarice Starling,
agora interpretada por Julianne Moore, é muito raso e também
mal explicado. Na batida policial do início da trama, fica absolutamente
claro que ela queria suspender a ação (e ordenou a suspensão
para todos), mas foi desobedecida por um policial idiota. Starling tinha,
portanto, muitas testemunhas. Por quê elas não foram ouvidas?
Só porque alguém queria deslocá-la para a caça
de Lecter? Os personagens de Gary Oldman e Ray Liotta são infantis.
Não apareciam vilões mais ridículos desde o Dr.
Evil e o Mini Me, de Austin Powers. E o que são aqueles
italianos criadores de javalis? Eu fiquei esperando Asterix e Obelix
entrarem na tela para pegar aqueles bichos feios e fazer um bom churrasco.
Tudo
isso, contudo, ainda seria digerível se Ridley Scott e o diretor
de fotografia não ficassem o tempo todo enfeitando as imagens.
O estoque de filtros laranja deve ter diminuído bastante em Florença.
E o de ventiladores de teto com certeza acabou. Entre 77 e 82, o inglês
Scott dirigiu Os Duelistas, Alien e Blade Runner. Três
bons filmes. Depois ainda fez o divertido Thelma e Louise. Como
um realizador que já deu mostras de talento agora se envolve
em coisas como Gladiador e Hannibal? Respostas para esta
caixa-postal.
Finalmente, cabe ressaltar
que, ao contrário de O silêncio dos inocentes, Hannibal
não é um filme de suspense. É um policial de ação
com toques de horror. Hitchcock dizia que, num filme de suspense, o
espectador sabe que há uma bomba embaixo da mesa do bar em que
um casal inocente come sorvete. E ouvimos o tic-tac. E vemos a bomba.
E o casal come sorvete. Num filme de ação, vemos um casal
inocente comendo sorvete e, de repente, uma bomba, escondida sei lá
onde, explode. Em O silêncio dos inocentes, a mesa está
no escuro absoluto, o casal é formado por uma policial inteligente,
mas insegura, e por um psicopata canibal brilhante. Eles comem o sorvete,
invisível, e, de vez em quando, as colheres se tocam. A bomba
faz tic-tac. Em Hannibal, a mesa está numa sacada de Florença,
em baixo de um ventilador de teto, e o sol está se pondo. O casal
é formado por uma policial burra e um psicopata metido a besta.
Eles comem mocotó. E a bomba? E a bomba? A bomba é o filme.
Hannibal
(EUA, 2001). De Ridley Scott
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