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"Antes do Anoitecer" traz biografia de escritor dissipada



Está lá, na cena em que Javier Bardem, no papel do poeta e romancista cubano Reinaldo Arenas, assina um calhamaço às pressas e lhe dá o título de El Mundo Alucinante. Quer salvar a obra, despachando-a para a França. Consegue o objetivo em parte. O livro é publicado em 1969, Arenas ganha um prêmio estrangeiro e se torna um símbolo da resistência anticastrista. Tudo sem pôr o pé para fora da ilha. A outra parte é mais complexa. O autor paga caro por querer ser lido. Fidel Castro não gosta da alegoria surrealista e o manda para a prisão. A condenação tem status de sentença de morte, o que aconteceria em 1990, com o suicídio do autor soropositivo. Trinta anos depois de sua publicação, O Mundo Alucinante sintetiza a cinebiografia de Arenas por Julian Schnabel. Antes do Anoitecer é a seu modo uma narrativa figurada, extravagante mesmo, de uma trajetória de desespero.

Foi mais ou menos esse retrato que Arenas pensou para a vida do frade dominicano Servando Teresa de Mier, também pensador e escritor, que viveu entre o final do século XVIII e o início do XIX. O religioso lutou pela independência do México e foi perseguido pelo Santo Ofício. No livro, relançado no ano passado no Brasil com nova tradução, Arenas não poupou a fantasia e a liberdade em mexer nos dados biográficos de seu personagem. Encontrava ali um pouco do próprio universo. Sua arbitrariedade, no entanto, se justifica pela pouca idade do autor e pela precocidade de uma literatura em formação. Arenas tinha 20 anos quando finalizou O Mundo Alucinante. Para Schnabel, o romancista é seu Servando.

Mas a manipulação em Antes do Anoitecer acontece, digamos, em outro registro e fora dos domínios da herança literária. Dá-se, muito mais, na convergência de fatos e momentos históricos, arrastados muitas vezes no caso dos primeiros e relegados, no dos segundos. Assim, Schnabel faz renascer uma personalidade folclórica na primeira metade da vida, carimbada em sua homossexualidade, seus encontros fortuitos, num painel de verão eterno pré-Castro.

Até aí nada demais. O próprio Arenas assumia essa cultivada liberdade em sua autobiografia, lançada em edição póstuma, com o mesmo título do filme. A trajetória revista pelo autor e gravada por seu parceiro Lázaro Gómez Carriles (Olivier Martinez) foi uma das ferramentas de Schnabel, que no mais mesclou as obras na composição do filme. O que vem depois é que dever ser questionado.

Publicada a obra herege, Arenas vai para o inferno que é a prisão dedicada a dissidentes do regime, homossexuais e intelectuais. O escritor cabia em todas as categorias, mas não é muito fácil chegar a essa conclusão, pois a idéia que o diretor tem de um painel político em transformação se resume a militares armados invadindo uma festa para turistas ou um depoimento de presos para burocratas do governo. No mais, há a conhecida posição de que os homossexuais eram "vermes" em Cuba - como literalmente disse Castro - e mereciam até campos de concentração na ilha. Para não esquecer disso, o diretor carrega no pansexualismo do personagem e no tom francamente gay do filme.

Schnabel perdeu a oportunidade de alinhar um momento de profundas alterações de um país à representação individual desse torvelinho. Em Reinaldo Arenas e sua obra estão a síntese de uma nação que perde sua identidade mais reconhecida, a alegria de viver, e a troca pela eterna expectativa de uma sobrevivência truncada. Por vezes reconhece o valor dessa luta inglória e, por exemplo, põe seu protagonista à deriva numa bóia em fuga desesperada. Existe algo de insólito nesse escape que faz valer um bom momento do filme.

Seria injusto não colher mais alguns. Há a seqüência inicial, na qual o menino Reinaldo (Vito, filho de Schnabel), no interior miserável, explica a ausência do pai, a forte ascendência da mãe (Olatz Garmendia, mulher de Schnabel) e as primeiras manifestações de sua sensibilidade poética. Também o rompante em se juntar aos revolucionários a bordo de uma carroça dirigida por um irreconhecível Sean Penn, numa das muitas pontas de astros e até colegas cineastas. No primeiro caso está um papel duplo e rápido para Johnny Depp como o travesti Bom-Bom e um militar; no outro, Hector Babenco, diretor argentino radicado no Brasil, e o polonês Jerzy Skolimovski. Parece também ter sido uma festa particular para Schnabel, um pintor da turma de Andy Warhol, agora cineasta.

Os críticos presentes ao Festival de Veneza do ano passado se ressentiram, no entanto, de uma abordagem mais madura por parte do cinebiógrafo. É notável a falta de ritmo e noção de tempo, quando Schnabel arrasta seu mártir num final cansativo e deprimente até a morte. O júri da mostra entendeu de outra forma e concedeu ao filme dois prêmios, o especial do júri e melhor ator para Bardem. Tudo bem para o espanhol Bardem. Ele está ótimo e desempenha um "tour de force" para quem sempre vendeu a imagem de macho latino. Pelo papel, ele disputa um Oscar no dia 25. Numa entrevista para a reportagem, na época, ele se sintonizou com Schnabel ao afirmar que não conhecia a vida e a obra de Arenas. O diretor disse que se dedicou ao filme depois de ter visto um documentário sobre o escritor. Talvez estejam no olhar pouco habituado e próximo as falhas de abordagem de Antes do Anoitecer. O filme, antes de retrato acabado, faz-se passar apenas como um bom acessório à vida de Arenas, alucinante por um sentido que o diretor não entendeu. (Orlando Margarido - Investnews/ Gazeta Mercantil)

 

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