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"O Rei Está Vivo", 4º Dogma, irmana grandes personagens e os homens comuns



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Os homens e mulheres que o diretor dinamarquês Kristian Levring confina em um deserto, no limite entre a vida e a morte são, tanto quanto possível, homens "comuns". São de várias nacionalidades, o que os torna vagamente exemplares de uma situação universal. Há gente madura, um velho, gente jovem e um homem negro ocupando uma posição de serviçal do grupo porque é o chofer de um ônibus que se desvia da rota. O desconforto, o calor, a fome e, sobretudo, a esperança de sobreviver enfraquecendo a cada dia, atritam a fina camada de civilização que recobre o comportamento. Coube a Freud, aliás, advertir-nos sobre a espessura mínima dessa camada e talvez lhe caiba a responsabilidade de ter sugerido a incontáveis ficcionistas deste século uma situação semelhante à do filme O Rei Está Vivo. Sem essa elaborada construção que são os papéis sociais, sem as mil e uma distrações do cotidiano o bicho-homem vem à tona, frágil e feroz ao mesmo tempo.

Fosse só isso a história, o psiquismo cru emergindo sob pressão, dificilmente escaparia ao estereótipo que, aliás, bordeja com insistência.

Há a mulher que descobre seus verdadeiros sentimentos em relação ao marido, a jovenzinha que revela sob a aparência sensual a criança desamparada, o racismo, o machismo, e outras "revelações" igualmente previsíveis em situações dramáticas de amostragem. Quanto a esse aspecto da narrativa, o que nos informa sobre a verdade particular de cada personagem, há diálogos redimidos da banalidade apenas por intermédio da elaborada intervenção dos intérpretes. Fazem tudo bem, estão perfeitamente secundados por uma câmera atenta e paciente que nos deixamos fascinar pela interpretação mais do que pelos acontecimentos dramáticos desses confrontos interpessoais. É uma característica simpática do cinema europeu esse respeito ao tempo necessário para que se configure uma emoção desenhada pelos intérpretes. Kristian Levring registra calmamente a exaltação de seus personagens em vez de usar recursos exteriores frenéticos. O teor dos conflitos é que peca pela falta de originalidade.

No entanto, o roteiro, escrito a duas mãos pelo diretor e por Anders Thomas Jensen, prevê uma inesperada distração para o grupo confinado: um artista imiscuído no grupo convence-os a encenar o Rei Lear. A ascese a que se propõem esses novos diretores do norte europeu - um cinema sem piruetas tecnológicas - sugere uma proximidade com a idéia do teatro e esse filme, indiretamente, tematiza essa afinidade. As grandes tragédias da cultura ocidental resistem como modelo de representação e beleza porque seu meio expressivo privilegiado é o intérprete. Estão latentes, na base da cultura, com raízes quase tão profundas quanto a parte inconsciente da atividade psíquica. É possível desencavar esse modelo de representação até nos seres destituídos de grandeza como os personagens do filme. Fazer nascer um personagem de escala maior do que eles os atrai sem que saibam como nem por quê.

Na verdade, os trechos em que manifestam suas frustrações, seus rancores e sua sexualidade poderiam perfeitamente ser formalizados por um estilo próximo ao do melodrama psicanalítico. Seria suficiente para a reduzida dimensão dessas criaturas ficcionais. E, no entanto, reúnem-se em torno de uma história que os ultrapassa como formalização e sentido e tentam representar. Que importância tem, para eles, a história de um velho rei que divide o reino entre suas filhas? Nenhuma. O filme, obedecendo à coerência naturalista, não força a analogia entre a situação terminal do deserto e a situação trágica do texto shakespeariano. Desorganiza a seqüência narrativa de Rei Lear porque, no estado de pauperismo físico e confusão mental dos personagens, não podem sequer apreender o plano lógico da ação. Não há, enfim, um paralelismo óbvio entre o reinado de Lear e o mundo do deserto.

Há quem participe da representação da peça para afastar o pensamento da morte, mas há também, emergindo do grupo, a ambição de se apossar do personagem, o encanto genuíno por um fragmento de beleza que até então, em situações comuns, estava fora do alcance. A teia da cultura, tramada com belas palavras é mais resistente do que a dos colóquios da vida real (o tranqüilo homem do deserto que observa os forasteiros dirá que falam, mas não se dirigem uns aos outros). Tampouco a canhestra encenação dá sentido às palavras, ou às vidas daqueles que as prenunciam, mas a atração pelo texto é ainda assim um vínculo poderoso com o que resta da humanidade em cada um.

Por fim só há isso, a sombra de Lear. Ninguém se redime espiritualmente ou fisicamente pela experiência da arte, pelo menos na perspectiva desse cineasta dinamarquês. A peça de Shakespeare é uma herança inelutável, o melhor que se pode fazer enquanto se aguarda a morte. E só assim, remotamente e de um modo enviesado, se irmanam os grandes personagens trágicos e a massa dos homens comuns sofrem e sabem que vão morrer no fim da história. Assim, o esboço de um rei enlouquecido pela dor, de uma filha perversa e de uma mocinha boa e inocente tem a mesma potência misteriosa da natureza porque não serve a nada e, no entanto, fascina e subjuga.(Agência Estado)




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O REI ESTÁ VIVO

Título Original: Dogme 4 - The King Is Alive
País de Origem:
(Dinamarca/ EUA/ Suécia)
Ano: 2000
Duração: 108 minutos
Diretor: Kristian Levring

Elenco: Miles Anderson, Romane Bohringer, David Bradley, David Calder, Bruce Davison, Brion James, Peter Khubeke, Vusi Kunene, Jennifer Jason Leigh, Janet McTeer, Chris Walker, Lia Williams










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