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Blockchain tem potencial de tornar indústria da moda mais sustentável

Tecnologia por trás das criptomoedas possibilita o rastreamento dos insumos na cadeia produtiva e ajuda na economia circular

23 dez 2023 - 09h11
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Está certo que o blockchain se popularizou com o surgimento das criptomoedas, mas essa tecnologia tem sido usada em setores bem distantes do volátil mundo dos bitcoins. Na indústria da moda, empresas já utilizam o blockchain para manter um registro confiável e transparente dos componentes da cadeia produtiva. Com isso, conseguem saber a origem da matéria-prima, acompanhar o fluxo de transformação e decidir como dar circularidade aos resíduos.

A adoção da tecnologia, nesse caso, ajuda a mudar o jogo em uma indústria que é extensiva no consumo de recursos naturais, como aponta a Fundação Ellen MacArthur, principal autoridade mundial em economia circular. Um estudo da organização estima que 90% do desperdício do setor é decorrente da retirada e do processamento de insumos, dentro de um modo de produção que por muito tempo tratou apenas como lixo poluente itens que, na realidade, são resíduos e produtos com valor econômico.

É aí que o blockchain cai como uma luva. As empresas armazenam informações de forma segura e imutável, mostrando o caminho das peças, desde a origem da matéria-prima até o consumidor final. Isso não só evita desperdício como também assegura que não ocorram práticas que contrariem as normas de ESG.

Dentro do conceito de economia circular desenvolvido pela JBS, principal empresa de proteína animal do mundo, a produção de couros está em transição para um modelo mais sustentável, batizado como kind leather. Atualmente, 30% dos couros processados pela empresa já seguem esse modelo.

"Com o processo de amadurecimento do mercado e crescente entendimento e aceitação do produto, assumimos a meta de chegar a 100% dos couros no Brasil em kind leather até o fim do próximo ano", afirma o diretor de Sustentabilidade da JBS Couros, Kim Araújo de Sena. O kind leather pode ser usado pelas indústrias de vestuário, calçados e acessórios, mas também nas áreas automotiva e moveleira.

O monitoramento começa no início da cadeia, com os fornecedores de bovinos - a matéria-prima é rastreada usando blockchain, dentro da plataforma Pecuária Transparente. "É o mesmo blockchain utilizado por bancos, por exemplo, impedindo que os dados fornecidos sejam alterados, desviados ou mesmo visualizados por terceiros." Na sequência, quando o couro está disponível para ser beneficiado, entra em cena outra tecnologia da Indústria 4.0: o machine learning.

A produção de kind leather conta com a ferramenta para avaliar os couros e ajudar a definir a área principal de corte. As aparas, que seriam descartadas no processo tradicional, são separadas para a produção de colágeno, tanto industrial quanto para saúde e farmacêutica, em duas outras empresas do grupo, a Novaprom e a Genu-in, respectivamente. Isso é feito antes de o couro passar por alguns dos processos químicos que impediriam o aproveitamento da pele para produzir colágeno.

"Durante esse período de testes, enviamos couros com diferentes formatos propostos para análise em um equipamento que mapeia os defeitos e otimiza os cortes das peças. Isso significa reduzir ao máximo a parte que seria descartada de um couro bovino", conta Sena. "Por meio dos estudos desses testes, vamos realizar análises estatísticas e propor um modelo ideal através de estudo com machine learning e redes neurais."

Além do aproveitamento da pele e do colágeno, há benefícios com a redução de outros recursos, como água e energia elétrica. "A tecnologia gera até 93% menos resíduos, consome até 62% menos energia elétrica e demanda 52% menos de consumo de água."

O gasto de água durante a produção industrial e fabricação de bens é calculado através do que se convencionou a chamar de pegada hídrica. Para o processo de couro bovino, a fração de água usada chega, em média, a 5,5%, de acordo com a organização internacional Water Footprint.

Desafios da indústria da moda

A produção de roupas é o segundo setor mais poluente da indústria. Dados da Fundação Ellen Macarthur apontam que a cada segundo um caminhão de lixo têxtil é descartado em um aterro sanitário no mundo. No Brasil, cerca de 4 milhões de toneladas de resíduos acabam tendo o mesmo destino anualmente.

"A roupa faz parte do modelo de negócio de muitas empresas para que a peça dure pouco, justamente para você utilizar algumas vezes e ter de comprar de novo", afirma Thais Vojvodic, gerente da Rede de Pacto do Plástico da Fundação Ellen MacArthur. De acordo com ela, o lixo têxtil é um dos mais problemáticos no mundo, ao lado dos resíduos plásticos.

O desafio da indústria é grande e a solução pode passar também pela utilização da tecnologia, garantindo melhorias na produção, na logística e na reutilização dos produtos. Nesse processo, um dos usos do blockchain é justamente na hora de certificar a sustentabilidade de uma matéria-prima ou de uma peça de roupa.

Para o diretor-executivo e fundador da Cotton Move, José Guilherme Teixeira, a falta de transparência é um dos problemas da indústria têxtil. Na opinião dele, o Brasil está atrás dos grandes cases de economia verde do setor, como o europeu.

"Toda empresa que tem a transparência assegurada pelo registro de blockchain tem a rastreabilidade evidenciada", diz Teixeira. "Por outro lado, as que dizem ser sustentáveis e não contam com registro em blockchain se tornam duvidosas."

Em 2018, a Cotton Move começou a investir em economia circular com o projeto ReJeans, em que o tecido é desenvolvido com resíduos de pré-consumo. Agora, a startup já conta com um aplicativo de plataforma circular, conectando todos os envolvidos no ciclo do algodão, desde a manufatura das fibras até o consumidor final.

A empresa utiliza blockchain para dar rastreabilidade e transparência ao processo. O sistema armazena informações de forma segura e imutável, mostrando o caminho das peças, desde a origem até o consumidor final, evitando desperdícios e assegurando a ausência de envolvimento com mão de obra escrava, por exemplo.

A reciclagem do algodão possui dois processos a mais do que os produtos lineares: a desmontagem, feita de forma manual, e o ciclo de reaproveitamento do tecido. Nesse processo, a Cotton Move conta com a parceria da Retalhar, que inicia a manufatura reversa. Por lá é feita a separação das matérias-primas e o desmonte total do tecido para a composição de uma nova fibra.

Cerca de 70% do material enviado para a empresa é reaproveitado. Após a primeira etapa, é feito um novo fio, enviado para uma tecelagem. Esse tecido retorna, então, para a confecção de outras peças de roupas. Entre as parceiras da Cotton estão a C&A e a Reserva, por exemplo.

Das matérias-primas aos fornecedores

A varejista C&A tem trabalhado em duas frentes: a rastreabilidade e a oferta de produtos circulares. O processo de seleção dos parceiros é feito por blockchain, como explica Cyntia Kasai, líder das áreas de ESG, Comunicação e Impacto Social. "É uma grande plataforma tecnológica, onde cada elo de produção, a cada movimento dessa peça, é registrado." Esse caminho fica disponível para consulta em um QR Code, que é colocado nas roupas.

A C&A faz o monitoramento e o desenvolvimento das etapas de produção, avaliando 75 pontos socioambientais e de compliance, observando critérios globais de escolha de fornecedores. "Se ele é um fornecedor que não atinge essa determinada pontuação, mas tem potencial, contamos com equipe para desenvolvê-lo", conta Cyntia.

Além da transparência na cadeia produtiva das peças, a C&A aposta no jeans reciclado, através do movimento Reciclo. As lojas têm pontos de coleta, nos quais os clientes podem depositar suas roupas usadas, que são selecionadas e enviadas aos parceiros que cuidam do desmonte das peças e da criação de tecidos, a partir da manufatura de uma nova fibra. As coleções desse tipo, no entanto, ainda são 1% do que é oferecido nas lojas.

A executiva conta que há previsão de ampliar a rastreabilidade para matérias-primas mais complexas, como poliéster e viscose. E também de aumentar o uso de mais matérias-primas sustentáveis, incluindo algodão, poliéster e viscose.

Com reportagem de Diane Bikel, Ellany Vlaxio, Gabriel Rios, Gabriela Jucá, Giovanna Marinho, Juliano Galisi, Marcos Furtado, Michelle Pértile, Ramana Rech Rogério Júnior, Victória Carvalho e Ylanna Pires

Estadão
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