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Universidade Zumbi faz 20 anos em salão que proibiu negros

Semana acadêmica de aniversário teve a presença da filósofa Djamila Ribeiro em palestra sobre “lugar de fala”

20 fev 2024 - 09h09
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No antigo salão de festas do Clube de Regatas Tietê, que proibiu negros, Anderson Barbosa, estudante de Direito, assiste palestra sobre “lugar de fala”
No antigo salão de festas do Clube de Regatas Tietê, que proibiu negros, Anderson Barbosa, estudante de Direito, assiste palestra sobre “lugar de fala”
Foto: Marcos Zibordi

No final da tarde de 19 de fevereiro de 2024, três jovens pretos chegam pela calçada da marginal Tietê, perto do Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, e entram em um prédio histórico da elite paulistana, o extinto Clube de Regatas Tietê, local que, no passado, proibiu “gente de cor”, mas atualmente abriga a Universidade Zumbi dos Palmares.

Os jovens são alunos chegando para a abertura da semana acadêmica com a filósofa Djamila Ribeiro, iniciando as comemorações dos 20 anos da instituição. A palestra acontecerá exatamente onde, em 1978, atletas negros foram barrados, desencadeando a criação do Movimento Negro Unificado em São Paulo, com enorme manifestação diante do Teatro Municipal. 

A dúzia de alunas negras e negros no pátio conhecem essa e outras histórias de resistência. Há duas décadas a Universidade Zumbi dos Palmares forma advogados, administradores, publicitários, pedagogos e tecnólogos com consciência sobre o racismo e seus problemas correlatos.

Do porteiro aos estudantes, dos professores ao reitor, dos coordenadores aos administradores, quase todos são negras e negros. Foram mais de 4 mil profissionais formados, quase 400 em formação.

Alguns estão no pátio, uma hora antes da palestra começar. Ninguém usa as mesas de pebolim, bilhar e tênis. Mas a calmaria vira burburinho com a entrada de Djamila Ribeiro, cercada para fotos e tietagens.

“Olho e vejo pretos, pretos, pretos”, comemora a filósofa

A cena é rara no Brasil: mulher preta, referência acadêmica, recebida por alunas e alunos negros de uma universidade comunitária que luta pela inserção de jovens da quebrada no mercado de trabalho, em postos de destaque. 

Paciente, a autora de obras como Lugar de Fala fica por vinte minutos tirando fotos, recebendo carinho, devolvendo simpatia. Caminha alguns metros, encontra mais estudantes, para, faz novas fotos. 

A aluna Dominick Rocha assiste sentada. Tetracampeã de basquete no torneio Novo Desporto Universitário com o time da Universidade Zumbi dos Palmares, segura a ansiedade.

Daqui a pouco, entrará triunfante pelo corredor central do antigo salão de festas do Clube de Regatas Tietê, com outros atletas da faculdade, na abertura da cerimônia.

Alunas e alunos esperavam no pátio da Universidade Zumbi dos Palmares por Djamila Ribeiro. Fotos, autógrafos e identidades compartilhadas
Alunas e alunos esperavam no pátio da Universidade Zumbi dos Palmares por Djamila Ribeiro. Fotos, autógrafos e identidades compartilhadas
Foto: Marcos Zibordi

Galeria de fotos e reunião a portas fechadas

A recepção de professores, coordenadores, pessoal administrativo e, finalmente, do reitor José Vicente, leva meia hora. Há um passeio pelos corredores, guiado pelo reitor, com paradas e explicações sobre fotos históricas. Segue-se mais meia hora de reunião a portas fechadas, com convidados como o ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva.

Então, com inevitável, mas pequeno atraso, um corteja acompanha Djamila Ribeiro até o salão onde haverá a aula magna sobre “lugar de fala”. No mínimo 250 pretas e pretos lotam o auditório. Tem pai com criança de colo, idosos.

Abertura com berimbau e benção a Zumbi

Na abertura, o reitor José Vicente não poderia dizer nada muito diferente de “estamos muito felizes pelos vinte anos sobrevivendo sem governo, sem partido político, sem igreja, sem fundo internacional”. 

Para ele, a cerimônia “confirma a certeza do que foi a luta de Zumbi” e a presença de Djamila Ribeiro é a “tradução do sonho”. E passa a palavra. Mais de uma hora depois de ter chegado, a filósofa começa a falar.

Vinte anos atrás, quando a Universidade Zumbi dos Palmares surgiu, Djamila Ribeiro militava em Santos. Nesse período, ela entrou na universidade, engravidou, largou o curso de Jornalismo, retomou e concluiu a graduação aos 32 anos. Aos 35, defendeu mestrado. Dois anos depois, o primeiro livro, justamente sobre lugar de fala, o tema da palestra.

Reitor José Vicente e a filósofa Djamila Ribeiro. A foto ao fundo é da primeira turma formada pela Zumbi dos Palmares.
Reitor José Vicente e a filósofa Djamila Ribeiro. A foto ao fundo é da primeira turma formada pela Zumbi dos Palmares.
Foto: Marcos Zibordi

Djamila Ribeiro fala amargas verdades com doçura

A filósofa dá uma aula. Ensina que “lugar de fala é o lugar social de onde falamos”, uma “postura ética, inclusive para os brancos que podem e devem falar sobre racismo”. Em meio ao tema da palestra, fala de espiritualidade, candomblé, chacras, menciona várias vezes a importância da saúde mental.

A mestra de cerimônias avisa que Djamila não poderá tirar muitas fotos após a aula magna, mas elas são inevitáveis. Na porta, saindo para o estacionamento, a filósofa para novamente, sorri e cumprimenta Sonia Maria da Silva, a primeira aluna matriculada na Universidade Zumbi dos Palmares.

A filósofa tem compromissos no dia seguinte, no Rio de Janeiro. A aluna fica para relatar sua história ao Visão do Corre.

A aluna número 1

Sonia Maria da Silva, a primeira aluna a se matricular na Universidade Zumbi dos Palmares, mostra sua carteirinha
Sonia Maria da Silva, a primeira aluna a se matricular na Universidade Zumbi dos Palmares, mostra sua carteirinha
Foto: Marcos Zibordi

No início de 2004, avisada por um amigo, a bancária Sonia Maria da Silva soube que surgia a Universidade Zumbi dos Palmares. “Tipo aquelas gringas, só pra preto, não acreditei”. Tinha 43 anos e prestou vestibular para Administração de Empresas. 

Com viagem marcada, estaria fora de São Paulo na hora da divulgação do resultado. Antes de ir ao aeroporto, passou pela Universidade com mala e tudo, insistindo para saber se tinha sido aprovada. Convence a atendente, que revela, ela passou.

A documentação foi feita na hora, assim como a carteirinha de estudante, que comprova o registro acadêmico número 000001. Mas Sonia Maria da Silva não precisa do documento para transitar pela Universidade Zumbi dos Palmares. 

Em cerimônias como a semana acadêmica, é chamada a compor a mesa junto aos convidados, sendo reconhecida até pela palestrante.

Fonte: Marcos Zibordi Colunista do Visão do Corre
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