No Carnaval de SP, bicampeã Mocidade Alegre entendeu o Modernismo
Mário de Andrade teria chapado com rap, break e grafite. Poucos conhecem seu trabalho de pesquisa sobre cultura popular
O texto aborda a importância da pesquisa de cultura popular brasileira incentivada por um dos fundadores do modernismo paulista, Mário de Andrade, com enfoque na Missão de Pesquisas Folclóricas realizada no Brasil em 1938.
No Carnaval de São Paulo, a Mocidade entendeu aquilo que a Vai-Vai não entendeu sobre o Modernismo. Aliás, sobre Mário de Andrade. Ou melhor: a importância do escritor atuando decisivamente nos primórdios da pesquisa sobre cultura popular brasileira.
Na moral, e com todo o respeito pela Vai-Vai, que eu queria que ganhasse, os modernistas paulistas não criaram os “renegados da moderna arte”, como diz o samba-enredo. Não dá pra comparar Mário de Andrade com Borba Gato.
Vou usar uma frase bonita: a incorporação das manifestações artísticas e populares é um dos princípios da arte modernista paulista, morou?
A descoberta, o deslumbre, o reconhecimento de Mário de Andrade diante do samba paulista ou das esculturas mineiras demonstra o interesse genuíno pelas manifestações culturais – desculpem a expressão desgastada – “de raiz”.
Sabe o que embaça? Se desconhecemos a obra literária, sequer imaginamos a importância de Mário de Andrade realizando e incentivando pesquisas sobre cultura popular no Brasil, como o samba rural paulista, sobre o qual escreveu texto fundamental.
O samba-enredo da Mocidade aborda viagem de artistas modernistas em 1924. Dali em diante, o interesse de Mário de Andrade pela pesquisa séria, científica, respeitosa, com registro em áudio e vídeo, só cresceu.
Levantamentos como os realizados no país inteiro, justificando medidas de incentivo do governo Lula à cultura hip hop, começaram quando Mário de Andrade virou Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, o primeiro órgão oficial do país, em 1935.
Você certamente já ouviu falar de “políticas públicas”. Foi o que Mário de Andrade fez. Escritor e grande pesquisador, sobretudo de música, ele jamais se colocaria contra leis de incentivo cultural. E quando teve o poder de decisão política, instituiu curso preparatório para pesquisas científicas sobre cultura popular.
Ele foi ministrado por ninguém menos do que Dina Lévi-Strauss, esposa de Claude-Levi Strauss, cuja famosidade como antropólogo ofusca a importância da esposa, também antropóloga, além de etnóloga e filósofa, monstra.
Ela ensinou os técnicos do Departamento de Cultura a registrar, fotografar, filmar, entrevistar o povão que realiza a cultura nas quebradas do país. O popular foi levado a sério, assim como o dinheiro público.
“Não é amadoristicamente se meterem no meio do povo, de lápis em punho, perguntando coisas, rindo das aparentes tolices que escuta, assustando o povo e sendo enganado por ele. É preciso lidar com o povo e saber o que deverá ser colhido, como e para quê”.
O primeiro trabalho dos técnicos formados pelo Departamento de Cultura de São Paulo foi o curiosíssimo mapeamento de comidas proibidas (tipo manga com leite), danças populares e – você não vai acreditar – métodos de cura do terçol, aquela inflamação no olho, com anel.
Sim, minha gente, o terçol se cura esfregando um anel, e o levantamento, que enviou 10 mil questionários às cidades do interior paulista, constatou que em alguns lugares valia qualquer anel; em outros, só de ouro; mas pode ser que só funcione com aliança de noiva virgem.
Esses e outros resultados foram apresentados no Congresso Internacional de Folclore, em Paris, em 1938. No mesmo ano, Mário de Andrade organizou e destinou verba para a ambiciosa Missão de Pesquisas Folclóricas, a mais espetacular e importante pesquisa sobre cultura popular até então realizada no Brasil.
Durante seis meses, os pesquisadores percorrem 20 cidades do interior da Paraíba e Pernambuco; duas no Piauí; além das capitais do Ceará, Maranhão e Pará. Recolheram impressionante documentação: 19 filmes, captados com os equipamentos de som e imagem de ponta; mais de mil fotografias e outro milheiro de objetos, religiosos ou não, de sopro, corda e percussão; perto de 1.500 melodias.
Ainda produziram mais de 18 mil documentos em papel, como cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, letras de músicas, dados sobre arquitetura, entre outras relíquias culturais das periferias e comunidades rurais. O material pode ser visto pela internet ou ao vivo no Centro Cultural São Paulo.
Mário de Andrade teria chapado com o rap, o break e o grafite. Dança, música e rima improvisada, como a dos emboladores, faziam a cabeça do escritor, que não teria miguelado verba para pesquisa sobre hip hop, tenham certeza.
A crítica necessária ao Modernismo tem que ser justa, meu mano – palavra que, nos clássicos da literatura brasileira, aparece pela primeira vez em Macunaíma, um livro chato, muito cerebral, talvez dispensável. Nele, os irmãos que protagonizam a história se chamam de “manos”.