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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Noir

Terça, 29 de outubro de 2002, 15h13



A vida é uma farsa a levar por todos.
--A. Rimbaud

O caso estava me dando nos nervos, e as coisas estavam começando a ficar estranhas. "Ainda prisioneiro", o pensamento me dilacerava. Há mais de duas semanas sem dormir, eu havia escorregado numa fenda da realidade. Cinco minutos para a meia noite, o relógio da plataforma avisou. De dentro da cabine uma voz abafada chamou meu nome.

- Mr. Silva?

- Oh yeah.

- Telefonema para o senhor, sir.

Atendi ao telefonema, e pelo vidro pude notar com o canto dos olhos a loirinha de dentes brancos que me olhava com o canto dos dela. Tentando disfarçar, passava batom e cobria o sorriso branco com o pequeno espelho. Era bonita, daquelas belezas que fazem pensar. No telefone era Radun, com o número do meu trem. Todas as noites eu recebia um telefonema com novas indicações, como o número do meu trem, o destino e, às vezes, uma breve lista de nomes. Eu estava em missão de pena, o que significava que eu devia resolver o caso com base unicamente nas informações liberadas pelo computador central, mas não tinha acesso livre a elas. Havia um caminho específico a ser traçado, uma certa ordem cronológica que restringia toda a gama de possíveis respostas e atitudes para uma rota única, o único caminho permitido. Se alguma resposta fugisse do roteiro pré-programado, era preciso esperar um novo telefonema, dali a vinte e quatro horas. Radun era o oficial responsável pelo repasse de informações, uma voz hesitante, voz de bêbado sem dúvida, uma vez que os telefonemas sempre eram durante a noite. Desta vez, Radun não me deu nomes, mas ditou um endereço para que eu anotasse. Eu acabara de passar onze dias em Vilesham, e finalmente rompera o código do CC. A chuva batia com violência na parte descoberta da plataforma, respingando dos guarda chuvas e das pedras azuladas pela luz. Meu trem era o vinte três quarenta e sete para Queenstown, e saía à uma e meia na plataforma trinta e seis. Larguei o fone e saí da cabine, caminhando a passos largos em direção à saída.

Bem em frente à estação, do outro lado da rua, ficava o Hula Hoop, um bar de marinheiros, com shows de transformistas. Naquele tempo os transformistas já estavam fora de moda, mas havia alguns lugares onde eles podiam ser encontrados, e Vilesham era um deles. No resto do continente, os bimorfos já dominavam totalmente o mercado, levando todas as clínicas de mudança de sexo à falência. Mas, como eu disse, o Hula Hoop tinha transformistas e, sabe, eu nunca suportei transformistas e o modo exagerado como eles movem a boca durante as apresentações (neste ponto os bimorfos são superiores). O caso é que com ou sem transformistas, o Hula Hoop era um bar, e um bar era exatamente o que eu precisava naquele momento. Sentei e pedi uma dose de hidrotálio. Uma dose equivalia a um gole. Bebi tudo de um trago só, e aí então veio a velha rotina. Senti o tremor da bebida esquentando o lábio inferior, os olhos turvos, a concha da orelha adormecendo, os sons e imagens ficando mais distantes, como num monitor preto e branco, cada vez mais branco. E antes do torpor ainda pude ver a loirinha atravessando a porta de veludo, tirando seu chapéu e entregando o casaco molhado ao mâitre. Ela me olhou e de repente o sorriso se perdeu com aqueles dentes no branco asséptico do coma.

Acordei meio surdo, com a impressão de vê-la sair, mas não podia ter certeza. Acordar de um coma de hidrotálio é um processo que pode levar alguns minutos até a recuperação total dos sentidos e o domínio do corpo. Primeiro você abre os olhos, em seguida começa a ouvir, logo depois consegue falar e se mover, mas o tato pode demorar horas até retornar. Essa é a grande beleza da coisa. Logo que consegui me levantar, fui até o balcão e paguei o robô com uma nota amassada, puxada de dentro do forro do paletó. Um marinheiro sentado de costas para o balcão cantarolava alegre. I can't get no satisfaction. E no fundo dos olhos estalados, que me olhavam, dava pra ver uma faísca obscena piscando. Peguei o troco e saí porta afora o mais rápido possível, mas era tarde demais. Na calçada, senti alguém segurando meu pulso.

- Nem chance de eu te pagar um drink?

- Desculpa, meu chapa. Mas tenho que pegar um trem.

Ele soltou meu pulso, e voltou para dentro do bar, como se nunca tivesse saído de lá.

>>continua

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