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    ALEXANDRE RODRIGUES
alex.rod@terra.com.br

O condomínio

Segunda, 30 de setembro de 2002, 23h39



O condomínio é um prédio antigo e de pedras sujas na fachada. Nele mora o homem que um dia acordou velho e decidiu escrever a história da própria vida, com medo de morrer sem ser conhecido. Juntou papéis e uma máquina Facit comprada em brechó. Durante dias, escreveu sem parar para ler ou dormir ou comer. Escreveu sobre a infância e a juventude, sobre o amor e o casamento, sobre os filhos, que estavam viajando por algum lugar, e a eternidade. Escreveu sobre a auto-realização e o trabalho, o dinheiro e o encontro que uma vez teve com o presidente. Quando terminou, leu pela primeira vez o que tinha escrito. De início, ficou satisfeito com o estilo e a narrativa.

Sublinhou os erros de português para corrigir depois. Aos poucos, porém, cada página fez crescer um mal-estar, como uma nuvem escura sobre sua cabeça. Depois da última, já era de noite. Ele ficou muito tempo fumando e olhando pela janela outros velhos, correndo na rua atrás da juventude. Quando voltou à máquina, juntou os papéis e formou uma pilha perfeita e cuidadosa. Jogou álcool em cima e ficou vendo a chama azul destruir tudo. Depois, queimou também as folhas em branco, só deixando uma intacta. Colocou-a na máquina e, com as mãos trêmulas, escreveu: EU NÃO VIVI.

No condomínio também mora Vera, a mulher prateada. Todo dia volta para casa com manchas de tinta que o removedor de maquiagem não retirou do rosto. Ganha a vida vestida de estátua da liberdade numa esquina do centro, o corpo pintado de prata, imóvel em cima de um pedestal. Só quando lhe jogam uma moeda, se move e agradece com um gesto de mímica. Suas reverências fazem rir as crianças, emociona casais com uma rosa jogada aos pés da mulher, faz parar o homem que ia apressado para o escritório. Quando está parada no pedestal, sente fome e vontade de ir ao banheiro, os músculos se retesam em pontadas de dor, as pernas tremem porque já passou dos sessenta, mas precisa continuar e continua, pois as gorjetas nunca dão para nada.

No andar onde a lâmpada do corredor está queimada, habita Lucas, o homem pneu. Um dia, foi até o corredor, dobrou em forma de círculo e começou a rodar, mas como carne e ossos não são como aço e borracha, oscilou e bateu sem direção nas paredes. Os vizinhos chamaram um psiquiatra, que examinou Lucas e disse: Ele não é louco, só perdeu a direção na vida, como muita gente. O psiquiatra deu uma injeção e receitou calmantes para Lucas. No dia seguinte, Lucas abriu a porta e surgiu andando. Os vizinhos saíram para olhar e o cumprimentaram pela melhora. Mas depois de agradecer, ele andou até o fim do corredor e depois de volta ao início. Depois até o fim e o início de novo e mais uma vez. Tirou do bolso uma folha de papel dobrada e fez anotações. Com um gesto das mãos, traçou uma reta imaginária entre as paredes. Então foi novamente até o início e enrolou o corpo, tomou impulso e começou a rodar. Devagar, mas firme, atravessou todo o corredor, balançando às vezes, mas não batendo em nada, num passeio perfeito.

Cientistas e repórteres estiveram no condomínio para ver uma estranha inscrição que surgiu no último andar. Por baixo da tinta descascada, apareceram palavras num dialeto desconhecido, dois rabiscos entrelaçados e desenhos indefinidos. Os jornais disseram, citando um dos cientistas, que naqueles hieroglifos estava o segredo da felicidade eterna. No mesmo dia, uma multidão de curiosos apinhou o corredor para ver o segredo. Se empurrando, homens e mulheres só conseguiram parar por segundos para ver o que estava na parede, mas ainda assim poucos saíram decepcionados, alguns choraram, outros terminaram o trajeto de joelhos, como diante de um milagre. Esotéricos e céticos, convidados a um programa de televisão, deram suas opiniões, que foram contrárias umas às outras. No segundo dia, um homem alto e de bigodes montou uma banca ao lado do elevador e começou a vender camisetas e fotos do segredo. No terceiro dia, apareceu uma banca de velas, para as pessoas iluminarem o seu caminho. Um morador colocou uma corda e isolou as inscrições. No espaço restante, só passava uma pessoa por vez. Podia parar, se ajoelhar e rezar diante daquela que já era conhecida como “A parede sagrada”. Na entrada, o morador começou a cobrar ingressos. No quarto dia, o síndico consultou o regulamento do condomínio e verificou que não havia nada sobre a ocorrência de um fenômeno do tipo. A vida virara um inferno no condomínio, invadido por gente que não podia ser contida por portas ou aviso para não fazer barulho, gente que deixava o lixo pelo chão, pois ninguém nunca pensou em botar lixeiras nos corredores. Na reunião do condomínio, os moradores se dividiram entre os que reclamavam e os que gostavam da nova situação. Tentou-se uma votação, mas contentes e descontentes estavam em igual número e nada se decidiu. Por iniciativa própria, o síndico levou tinta, pincéis e um balde para o último andar. Pintou a parede sozinho naquela mesma noite. No dia seguinte, os jornais contaram o que tinha acontecido e uma multidão se reuniu diante do condomínio. Exigiram ver o segredo. Alguns apanharam porretes e mostraram armas para intimidar o síndico. Os moradores foram bater à porta dele, que primeiro disse que tudo já estava decidido, mas quando olhou pela janela, a multidão crescera e tomava toda a rua em frente. Lucas, rodando pelo apartamento, disse para ele deixar a parede como estava. Os outros moradores, com medo, repetiram a mesma coisa e então ele abriu as portas e avisou: Todos poderão ver o segredo. A tinta estava fresca, foi fácil de remover. Quando terminou, um rumor começou nos corredores, as pessoas olhavam para o segredo, mas ninguém se ajoelhava ou via um milagre. Onde antes havia palavras e símbolos sem sentido, estava escrito: o segredo da felicidade é uma miragem.

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