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    DANIEL GALERA
daniel.galera@terra.com.br

Aniquilação

Quarta, 28 de agosto de 2002, 16h32



Estava deitado, no colchão de casal sobre o chão de seu quarto, pelado, lendo tranqüilamente um romance do Fausto Wolff. O bafo da tarde começava a dar lugar a um vento frio, e trovões tímidos estouravam a poucos quilômetros dali. Fechou o livro e se esticou na cama, aproveitando o alívio daquele vento. Um pouco surpreso, percebeu que estava de pau duro. Há pelo menos uma década as ereções espontâneas eram algo bem raro. Decidiu aproveitar a iniciativa para descascar uma. Tentou mentalizar alguma mulher, e vieram apenas imagens de revistas. Selecionou uma e deixou a imaginação dar vida e movimento à ela. Depois de pouco tempo, contudo, sua cabeça esvaziou, como se o cérebro tivesse sido formatado. Sentiu um tremor nos órgãos internos. Tentou libertar um flato, mas aparentemente não se tratava de gases. O movimento dos órgãos ficou mais intenso, parecia que o estômago queria trocar de lugar com o pâncreas. Sua pele esfriou e começou a libertar um suor ralo. Uma dor aguda tomou conta do seu tórax e abdômen, dentro dos quais os órgãos já se agitavam com fúria. Uma protuberância começou a crescer na região das costelas, como se algum feto maligno quisesse se libertar usando um método radical. Contorcendo-se de dor, observou enquanto o calombo crescia debaixo do seu braço, deformando seu corpo horrorosamente. A superfície do calombo, antes lisa e regular, começou a assumir formas acidentadas, e ele reconheceu ali um braço rudimentar, depois um esboço de perna atrofiada, e por fim algo que assemelhava-se cada vez mais a uma cabeça. Era completamente incapaz de controlar seus movimentos, o corpo reagia sozinho, e o máximo que ele conseguia fazer era direcionar os globos oculares para o monstro que se formava, cada vez maior, cujos membros começam a adquirir um aspecto adulto, com pequenos pêlos escuros brotando da pele que, até há poucos segundos, era a pele dele mesmo. Desesperado, desejou ter um telefone ao alcance da mão, para chamar socorro médico. Trovões fortes explodiam lá fora, e pareciam uma trilha sonora adequada par ao que estava acontecendo. Aos poucos, o desespero foi se atenuando, dando lugar a uma resignação, e logo a seguir se transformando numa vontade de que aquilo acabasse logo, que chegasse às últimas conseqüências. A dor intolerável e a visão daquele fenômeno aberrante provocaram nele uma espécie de transe, que já não era mais dor, não era de sofrimento, e sim um torpor convulsivo. Um orgasmo, foi o que ele pensou. Um orgasmo que se estendia por intermináveis segundos, enquanto sua matéria orgânica entrava em colapso. Suas veias estavam inchadas, os músculos revolviam-se em pequenas cãimbras, e um formigamento agradável trazia uma sensação quase de sono. A seu lado, no colchão, um outro ser humano também se agitava, nu, com o corpo unido ao seu por um istmo de carne, que foi diminuindo de diâmetro, até que, com um estalo, rompeu-se. Gotas pesadas de chuva começaram a se chocar contra o vidro da janela. Sobre o colchão, ele via agora dois indivíduos, os dois idênticos, grunhindo de exaustão. E o mais estranho era que nenhum dos dois era ele.

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