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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Lagoa de Barros

Domingo, 19 de maio de 2002, 20h07



O baile da lagoa de Barros era tradicional desde a época de meus pais. Estávamos no meio do curso de Medicina e a única saída semanal era a ida a Barros. Todos dançavam e se divertiam. Eu mesmo, apesar de preferir os Martinis à dança, às vezes dançava também. Mas em matéria de garotas e dança, sempre fui considerado motivo de chacota.

As moças da cidade compareciam em peso, inclusive a filha do prefeito - uma ruivinha magra que gostava de me beliscar os flancos enquanto dançávamos, mania essa que mais de uma vez me obrigou a fugir discretamente para o mato com um copo de Martini em cada mão, por precaução. O baile acontecia no clube, mas durante a dança, os casais se reuniam às margens da lagoa. Eu dava voltas e voltas, ouvia seus gemidos e sussurros. No fim da festa, quando todos dispersavam, o sol despontando e as moças de vestidos enlameados, eu caminhava para casa.

Numa dessas ocasiões em que eu já havia bebido mas do que devia, e Rosana (a ruiva) se tornara inconveniente, aproveitei sua ida ao banheiro e escapei por baixo do balcão. Me sentia vitorioso por poder fugir, por não ser como os outros, que agradeciam as meninas pela companhia.

Mas logo no ponto onde a luz do salão dava lugar à sombra gelada da noite, havia um banco de pedra. E sentada ali, uma moça com flores brancas no cabelo desviou o olhar de seus pezinhos balouçantes e o apontou direto para mim. Endureci, e um calor que vinha das orelhas começou a se espalhar. Abri o melhor sorriso que pude ensaiar, e ela sorriu com todas as estrelas e aqueles olhinhos úmidos.

Seu nome era sua essência substanciada: Linda. Linda vestia luvas brancas e seu cabelo muito preto contrastava com a compleição alvíssima. Linda era doce e frágil, uma bonequinha de porcelana, e no momento em que me viu, eu soube que estava apaixonado. Conversamos durante toda a noite, estava frio. Sentados sobre o banco de pedra, tomei as mãos nas minhas. Aqueci seus dedos com meu hálito nebuloso, mas era como se eu soprasse minha alma em suas mãos. Linda sentia frio, e eu lhe ofereci meu paletó.

Sua casa ficava a uns bons vinte quilômetros da lagoa, e apesar de Linda me garantir que estava acostumada com o caminho, fiz questão de acompanhá-la. A casa de Linda era um casebre apodrecido, caindo aos pedaços, em contraste com a criatura palaciana que ali habitava.

– Quer que eu te acompanhe até a porta?

– Não precisa, eu vou sozinha.

E com um tremor do chão sob meus pés Linda me beijou um beijo de alfazema e sumiu na velha porta de madeira carcomida.

No dia seguinte, ao cair da tarde, voltei à casinha sob o pretexto de reaver meu paletó. Eu precisava rever Linda, levá-la embora para qualquer lugar, não podíamos mais viver separados. Um velho atendeu a porta, perguntei por Linda. O homem me olhou de cima a baixo, o cenho franzido, e não disse nada. Expliquei-lhe o episódio do paletó. O velho coçou a barba e me convidou a entrar.

– Escuta, moço. O senhor tem certeza que não bebeu demais? Eu moro aqui sozinho há vinte anos. E não conheço nenhuma Linda.

Por um instante, meu coração parou de bater. Aquela era a única casa num raio de quinhentos metros,eu não podia estar errado. Desculpei-me e ia saindo, quando na parede, um retrato empoeirado em moldura oval me olhou fixamente com seus olhos estrelados. E as luvas brancas...era ela.

– Quem, aquela ali? Impossível, moço. Aquela ali é minha filha Lindalva. Ontem fez vinte anos que ela morreu. O corpo sumiu, dizem que se afogou na lagoa de Barros. Tudo que sobrou da coitadinha é este retrato. E o quarto, que eu até hoje não mexi, de pena.

Com lágrimas e lembranças nos olhos, o velho me levou até o quarto. Vinte anos de poeira acumulados sobre os bibelôs, a penteadeira, o pequeno armário, a cama de lençóis rosa. E, sobre o lençol empoeirado, estendido de braços abertos, ali estava meu paletó.

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