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    MARIANA DIEHL BANDARRA
mariana.bandarra@terra.com.br

Joyce

Sexta, 12 de abril de 2002, 17h14



Joyce caminhava para casa cansada, porém linda. Nunca imaginara que fosse capaz de deixar Rômulo. Tinha medo que ele fizesse uma besteira, como se atirar de uma ponte ou dar um tiro na cabeça. Rômulo sempre fora muito dramático e teatral. Demais para ela, pensou, desviando das poças na calçada.

É verdade que ela o amava, mas sua vontade de não amar tornou-se tão grande que enfim Joyce reuniu todas as suas forças e pronto. Rápido e indolor. Lembrou-se de como Rômulo inflou as narinas e suspirou fundo, com cara de choro, antes de entrar no táxi em silêncio. Lembrou-se e riu. Ela não carregava mais o peso do amor, e agradecia a si mesma por esta bênção.

Chegando na porta do edifício chutou sem querer o primeiro degrau (usava uma sandália de salto com tiras finas de couro). Ela soltou um palavrão por hábito ¾ sempre chutava aquele maldito ¾ mas não sentiu dor. Havia bebido um pouco de champanha, o que certamente desempenhava um importante papel anestésico naquela noite maçante. Ao caminhar até a porta, Joyce ziguezagueou: a bebida por certo era mais forte do que ela pensara. Jogou-se na cama e dormiu.

Na manhã seguinte enquanto arrumava-se para ir ao cabeleireiro, Joyce levou um susto. Olhou para seu pé, para seu lindo pezinho de unhas pintadas e viu o osso do dedão. O aspecto da ferida era grotesco, as bordas escurecidas num tom de cinza arroxeado, o sangue marrom no meio, a falangeta despontando em riste. O peito do pé assumia também uma coloração estranha, um pouco mais suave. Joyce vestiu meias grossas. No hospital, o médico examinou seu pé com cara de espanto. “A senhora não gostaria de fazer alguns testes?”. Foi ao cabeleireiro, e na volta comprou um par de tênis sem experimentar.

Joyce passou a tarde de domingo no sofá. Sentia um cheiro estranho, talvez algo de podre na geladeira, mas estava com muita preguiça para limpar qualquer coisa. Retirou o curativo que fizera no hospital e olhava seu dedo descarnado, o osso cada vez mais visível, os dedos vizinhos ficando pretos. Assistiu a todos os programas na tevê, imóvel. Sentia as mãos formigarem e o formigamento foi se espalhando por todo o seu corpo, até dormir

Pela manhã ela acordou asfixiando. Cuspiu na mão uma massa marrom esbranquiçada, olhou de perto e pôde ver os pequenos vermes que ali se revolviam. Precisava olhar no espelho. Ao girar a maçaneta da porta do banheiro, um pedaço de sua mão ficou ali. Não havia sangue, nem dor. Apenas o pânico. No espelho, a pele opaca e esverdeada, cedendo à carne porosa. Joyce soltou um grito de horror e tentou chorar, mas seus olhos estavam secos. Respirou fundo e percebeu que o cheiro de podre estava mais forte, entendeu de onde ele vinha.

Joyce ficou um tempo parada, pensando, os olhos se movendo dentro das órbitas fundas. Depois abriu o armarinho e pegou um vidro de colônia que ganhara de Rômulo. Um cheiro tão gostoso, ela pensou, encharcando primeiro as mãos, depois o pescoço.

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