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    DANIEL GALERA
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Vira-latas faz banquete com bêbado curioso

Terça, 26 de março de 2002, 14h48



Ele está sentado com as costas apoiadas no muro, cigarro aceso na mão esquerda, e a fumaça é a única coisa que se move na noite fria. Há uma certa tensão no céu, prenunciando a chegada do amanhecer. Ele não traga a fumaça - solta pela boca e inspira pelo nariz. Então escuta o uivo pelo qual aguardava. O cão está atrás do muro. Ainda está ali atrás.

Há dois meses foi que ele ouviu o choro do cão pela primeira vez. Caminhava bêbado pelas quadras que separam a parada de ônibus da sua casa, era uma madrugada bem assim como essa. Ele voltava de uma festa, já era inverno, o frio queimava o rosto e cada passo dado era uma luta contra o cansaço. Mesmo caminhando, tinha de repente a sensação de acordar de um sono profundo, seria possível que dormia ao caminhar? E subitamente escutou os uivos, vindos de trás do muro ao longo do qual passava. Parou. Olhou para o muro, tinha uns dois metros e meio de altura, e não havia portão ou grade nenhuma indicando uma entrada para o terreno. Estava a três quadras da sua casa. Nunca tinha reparado naquele muro, ou naquele terreno. Escutou mais um uivo. Era sem dúvida um cachorro, mas aquele era um ruído anormal, carregado de uma agonia tão lancinante que ele ficou ali parado por minutos, querendo ouvir de novo. O bicho ganiu mais uma vez. Ele decidiu olhar. Escalou com dificuldade o muro, calçando os dedos e pés nas reentrâncias, atrapalhando-se e despencando algumas vezes. Depois de longo esforço conseguiu elevar a cabeça por cima do muro, mas logo caiu de volta ao chão. Naquele breve instante, tudo que conseguiu enxergar foi um vasto terreno baldio e, cercada de escuridão, a cauda imóvel de um grande cachorro.

Ele trabalhava como office-boy num escritório imobiliário do centro. Ano que vem faria cursinho usando o dinheiro. Morava com os pais em um bairro de classe baixa da zona sul da cidade. Era feio e pobre demais pra conseguir mulher, mas não pra fumar maconha ou beber cachaça com os mais velhos que ocupavam os botecos úmidos da vizinhança. Voltava bêbado pra casa toda noite, e toda noite detinha-se diante do muro, ansioso para escutar a presença do cachorro no outro lado. Na maioria das vezes, não escutava nada. Ficava ali sozinho, no silêncio dele mesmo e de seu cigarro, depois ia pra casa. Noutras vezes, contudo, escutava os uivos. De vez em quando passos, um galho trincando, um som de animal vivo.

Depois da primeira tentativa, nunca mais experimentou olhar por cima do muro. Era impedido por uma espécie de medo, mas não era bem isso. Tinha um inexplicável receio do que poderia ver. A presença do cão e de seus uivos ali no outro lado do muro fascinavam-no como uma aberração por trás de uma cortina: é difícil desferir o gesto rápido, capaz de revelar o horror que sabemos ali existir; no entanto, o gesto está o tempo todo engatilhado, e entendemos desde o início que ele é inevitável.

Pensava nisso quando andava de ônibus, quando aguardava em filas de banco. O que faz um cachorro dentro de um terreno abandonado e cercado por altos muros, sem nenhuma porta de entrada?

E hoje ele decidiu pular o muro.

Fuma um cigarro quando finalmente escuta a presença do cão: um uivo, e nada mais. Dá uma última tragada, profunda, e joga o cigarro longe. Com cuidado, vai escalando a parede. Firma os dedos no topo e, numa flexão dos braços, eleva o peito acima do nível do muro, mantendo o corpo ereto com o apoio das mãos.

Vê o cachorro. É enorme, e seus olhos refletem dois círculos intensos, azul-metálicos. Está absolutamente imóvel, a uns sete ou oito metros do muro, e apenas olha. O estado de magreza do cão é aterrorizante: por baixo de sua pelagem amarelada, corroída em muitos locais pela sarna, pode-se enxergar cada osso, cada junta, cada uma das costelas pavorosamente salientes. Apesar de tal estado, o cão permanece sobre as quatro patas, vigoroso, estático. Não fosse pela respiração arqueando suas costelas e fazendo sair pelo focinho negro curtas baforadas de vapor, ele afirmaria que o cachorro está morto de fome, e apenas mantém-se em pé por causa da rigidez pós-morte.

A presença do bicho dentro de um terreno vazio e cercado já não lhe causa nenhuma estranheza. O fascínio agora é pela própria imagem do cão, gigantesco, mortificado, imóvel. O silêncio é tamanho que ele escuta a tensão de seus próprios músculos, a pressão sobre os ossos que apoia no muro, o sangue circulando, o seu e o do cachorro. Escuta o funcionamento dos dois corpos vivos.

E tudo mais sucede-se em apenas cinco ou seis segundos: a força dos braços esgota-se, já não é possível sustentar seu próprio peso acima da parede, e ele tem consciência de que tudo depende de como resolverá inclinar seu peso, se for para trás cairá de costas na calçada, se for para a frente cairá para dentro do terreno baldio, para dentro do abismo onde o cachorro funde-se à sua escuridão, e é sem um rastro sequer de dúvida que ele precipita-se para dentro daqueles muros.

Observa o cachorro avançar em sua direção através das folhagens, cerra os punhos e já começa a chorar antes mesmo que a mandíbula se feche em sua garganta, que os dentes perfurem suas artérias e que um movimento selvagem, instintivo, quebre o seu pescoço.


Daniel Galera escreve às terças-feiras no Popular

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