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Agora Laura está alfabetizada, tem amigos na escola e xxxxxx  Foto: Arquivo Pessoal/Liege Margo Schmitt

'Fomos violentados', diz mãe sobre pedido para que filha com Síndrome de Down fosse para escola especial

Secretaria de Educação usou decreto inconstitucional como argumento, mas ativista seguiu na luta pela inclusão da pequena Laura

Imagem: Arquivo Pessoal/Liege Margo Schmitt
  • Maria Clara Andrade Maria Clara Andrade
  • Beatriz Araujo Beatriz Araujo
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19 set 2023 - 05h00
(atualizado às 13h34)

Professora de formação e mãe de uma menina com Síndrome de Down, Liege Margo Schmitt conta ter recebido uma 'sugestão' da secretária municipal de Educação da rede em que sua filha estuda para que ela fosse transferida para uma escola especial. A pequena Laura, de acordo com a escola, não teria condições de acompanhar a turma com estudantes sem deficiência.

"Fomos extremamente violentados", relembra Liege, que não abriu mão do direito da filha. A menina permaneceu na sala comum e, agora, após uma mudança de atitude da instituição de ensino, a ativista vê a filha deslanchar.

A situação aconteceu em Foz do Iguaçu (PR), na virada de 2021 para 2022. Tudo começou na retomada presencial dos estudantes às escolas após a pandemia de covid-19, em outubro de 2021. Na espera pelas doses da vacina, Laura, agora com 8 anos, ficou 18 meses longe da sala de aula da escola - por questões de saúde, ela voltou depois dos demais colegas.

Agora Laura está alfabetizada e diz ter muitos amigos na escola
Agora Laura está alfabetizada e diz ter muitos amigos na escola
Foto: Arquivo Pessoal/Liege Margo Schmitt

"Foi um período difícil", relembra Liege, que diz que a filha recebia atividades em formatos que não faziam sentido para seu processo de aprendizagem. "Qualquer criança teve uma lacuna muito grande no seu processo de ensino-aprendizagem".

Mas, para Laura, o retorno à escola teve ainda mais barreiras. A mãe passou a receber recados da professora da menina, nos quais dizia que ela não acompanhava os colegas e se negava a fazer atividades, "tocando o terror" na sala. 

Presidente da Associação Famílias Unidas pela Trissomia 21 e mãe ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, Liege acredita que sua filha tinha esses comportamentos de resistência porque estava sendo deixada de lado por estar 'atrasada'. A percepção é que a criança não estava sendo incluída, efetivamente.

Até que chegou o momento, nos últimos dias de 2021, em que Liege presenciou a professora se dirigindo a Laura com termos inapropriados, de forma intimidadora e na frente de toda a classe.

"Fui buscar a Laura e ouvi a professora chamando a atenção dela na sala. Bati na porta e ela falou que a Laura naquele dia surtou, que não estava dando pra aguentar e que 'Olha, eu vou te falar bem a verdade, ela tem que vir de arrasto, tem que usar força para trazer a Laura pra sala de aula'".

Isso fez com que a mãe pedisse por uma reunião com a escola para resolver a situação. Mas, como narra, a reunião acabou se estendendo para a equipe de Educação Especial da prefeitura e, como em uma emboscada, recebeu a 'sugestão' para que a menina fosse transferida para uma escola especial. Embora Laura fosse constantemente excluída das atividades na classe comum, a ideia de mudar a criança para uma escola especial fez com que Liege se sentisse "violentada". 

Liege conta que, na ocasião, a Secretaria Municipal usou como base de argumento o decreto nº 10.502, de 2020. O texto, editado pelo governo Bolsonaro, buscava instituir a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, que foi revogada no primeiro dia do governo Lula, após ter sido considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ainda em 2020.

Liege atua como professora há 23 anos e diz defender a inclusão desde o começo de sua carreira
Liege atua como professora há 23 anos e diz defender a inclusão desde o começo de sua carreira
Foto: Arquivo Pessoal

A mãe precisou, então, acionar movimentos sociais em prol da inclusão de crianças com deficiência, que criaram um "manifesto de repúdio às práticas educacionais segregadoras" do município. Na época, a secretaria se posicionou contrária " toda e qualquer conduta discriminatória" contra pessoas com deficiência. Em meio à repercussão do caso, a matrícula da menina foi mantida.

Questionada, a Secretaria Municipal da Educação de Foz do Iguaçu reforçou ao Terra que não houve negação de matrícula, mas confirmou a indicação para a classe especial.

"À época, a Diretoria de Educação Especializada avaliou a criança e sugeriu o encaminhamento a uma escola especializada. Com a recusa por parte da família, a vaga no ensino regular foi imediatamente ofertada. Nunca houve, por parte do município, a recusa de vaga da aluna", diz a nota.

  • • Negar matrícula é crime. Segundo o Artigo 8 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015: "ecusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência” é crime punível com reclusão de 2 a 5 anos e multa".
  • • Além disso, se o crime for praticado contra pessoa com deficiência menor de 18 anos, a pena é agravada em um terço.

'Direito básico'

Se eu não der comida para minha filha eu vou ser linchada em praça pública. Mas se eu negar o acesso à educação pra ela, está tudo bem? Como assim? É um direito dela. É um direito básico. O direito de ser alfabetizada, de aprender a ler. Alguém que não é alfabetizado fica à margem. -  Liege Margo Schmitt, mãe de uma menina com Síndrome de Down.

Liege, que é professora há 23 anos, diz defender a inclusão desde o começo de sua carreira. "Nas escolas especializadas, a Laura não teria [acesso à educação]? Porque não dá pra chamar de escola. A Apae não é escola. Eles não têm conteúdo", relata. 

A citação à Apae é reflexo da força da instituição no setor. Entre as opções de escolas especializadas, só a Apae concentra cerca de 66% de todos os estudantes com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento da educação básica que não estão em classes comuns, ou seja, inclusivas.

Segundo dados atualizados da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes) obtidos pelo Terra, atualmente há 101.384 pessoas com deficiência matriculadas em 1.298 escolas especializadas da instituição espalhadas pelo Brasil.

É direito:

  • • A quantidade de alunos segregados, em instituições que promovem esse tipo de sala, é a menor desde 2008, quando o Brasil passou a seguir a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU), junto a outros países. 
  • • O compromisso de assegurar o direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, para todas as pessoas, consta como emenda constitucional. Além disso, foi reforçado em 2015 com a instituição da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Tudo isso é guiado também pela Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI).

Ao Terra, a Fenapaes afirmou que todas as unidades educacionais da Rede Apae Brasil recebem da instituição as mesmas diretrizes e são orientadas a seguir as normas educacionais de seu Estado e/ou município, conforme as diretrizes nacionais das etapas e modalidades da educação básica. Porém, na prática, como apurado pela reportagem, há instituições que burlam a Base Comum Curricular (BNCC). Representantes de uma filial, inclusive, afirmaram ao Terra que "a Apae não alfabetiza", pois não tem esse compromisso.

Efeitos da inclusão

Liege insistiu no direito da filha e a deixou na mesma escola, que acabou mudando de abordagem. No início de 2022, a professora de Laura saiu e deu espaço para outra profissional, que fez com que a menina passasse a ser observada como parte do todo. Isso porque essa nova professora é especialista em alfabetização e trabalha com abordagem fônica - o que Liege trabalhava em casa com a filha, como uma abordagem indicada para pessoas com deficiência intelectual.

"Aconteceu de uma funcionária da escola falar pra mim 'Nossa, a Laura mudou muito, ela está muito diferente do ano passado. É outra criança'. Será que foi a Laura ou foi a escola que mudou a abordagem com a Laura?", questiona a mãe, que vê na inclusão a única opção para a educação.

Eu me assusto com a independência que a Laura tem hoje. Eu me assusto porque eu fui criada numa sociedade preconceituosa, discriminatória, capacitista onde me falaram que minha filha, por ser uma pessoa com deficiência, era um fardo  - Liege Margo Schmitt

Mesmo assim, Liege diz que entende as famílias que optam por matricular seus filhos em escolas especiais como as da Apae, por mais que seja contrária à atuação das unidades. "Não é raro, é comum a gente ouvir uma mãe e falar: 'olha, eu tive problemas na escola comum, tirei meu filho de lá, levei para Apae e, hoje, ele é feliz. Mas é óbvio, evidente que sim, porque ele não é cobrado lá'". 

Outras frentes

*Para ver a versão desse vídeo com audiodescrição, clique aqui

Quando o assunto é educação especial, há também aquelas instituições voltadas para pessoas com uma deficiência em específico. É o caso do local onde Eduardo, de 12 anos, estuda.

Ao Terra, sua mãe, Fabiana Lima, diz que a melhor opção foi matricular o filho em uma instituição especializada no atendimento a pessoas com deficiência, o Instituto de Cegos Padre Chico. Dudu, como gosta de ser chamado, é albino, tem apenas 10% da visão e é autista. 

O menino cursou até o 4º ano do Ensino Fundamental em escolas da rede municipal de ensino, em Diadema, região metropolitana de São Paulo. Ele recebia material ampliado e fazia Atendimento Educacional Especializado no horário oposto ao das aulas em um Centro de Atenção à Inclusão Escolar (CAIS), também de gestão do município. Depois disso, Fabiana confessa que ficou com medo de migrá-lo para uma escola da rede estadual, já pensando nas batalhas que teria que enfrentar para oferecer o mínimo ao filho.

Dudu tem 12 anos e está no 6º ano do ensino fundamental
Dudu tem 12 anos e está no 6º ano do ensino fundamental
Foto: Luis Nascimento

"A minha irmã, professora, falou: 'Fabiana, você pede o material no começo do ano, chega no final do ano. O aluno fica à toa, não põe ele, não'. E também não tem acompanhante, não tem estagiária para ficar com ele na sala", disse, se referindo ao profissional de apoio que acompanhava Dudu nas escolas de educação infantil.

No Instituto Padre Chico não há cobrança de mensalidade e Dudu diz ter todos os recursos de acessibilidade que precisa - além de agora, ele conta, ter mais amigos. Segundo a família, o ensino também segue os passados por escolas de classes comuns. A ida para uma escola particular também não era uma opção, explica sua mãe, por causa do valor da mensalidade e da cobrança extra por materiais ampliados e por uma 'estagiária' que o acompanhasse à parte. 

É proibido:

  • • Segundo a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), instituída em 2015, tanto o poder público quanto instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, são proibidas de cobrar valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas para estudantes com deficiência.
  • • Por mais que seja comum, como mesmo citou Fabiana, a cobrança de valores adicionais em razão de deficiência é crime punível, com reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Se o crime for praticado contra pessoa menor de 18 anos, a pena é agravada em um terço. 

Um dos hiperfocos de Dudu é em arquitetura
Um dos hiperfocos de Dudu é em arquitetura
Foto: Luis Nascimento/Terra

A Padre Chico é uma instituição filantrópica que oferece aulas até o 9º ano do Ensino Fundamental II. Em seu site, a escola diz que fez e ainda faz a diferença na vida de crianças e adolescentes com deficiência visual. Apesar de a apresentação dar a ideia de ser uma escola especial exclusiva, o instituto afirmou ao Terra que, desde 2011, também recebe alunos videntes.

Segundo a diretora Cynthia Carvalho, há uma cota de vagas destinada apenas a irmãos dos alunos com deficiência visual e para filhos de funcionários. Tais destinações fariam com que a escola fosse classificada como regular e inclusiva, afirma Cynthia.

"A nossa prioridade são cegos e baixa visão. Mas nós temos um número de cota por sala, onde eu posso ter até dois alunos que enxergam. É o mesmo conteúdo, só o material que para o cego é em braille, baixa visão é com a fonte ampliada e quem enxerga, a fonte é normal", diz. Atualmente, existem 22 alunos videntes em um universo de 124 crianças matriculadas. 

* Essa é uma das reportagens da série Educar para Incluir, que faz uma imersão na educação inclusiva no Brasil a partir da história de alunos com deficiência ou com superdotação -- afetados, todos os dias, pelos êxitos ou falhas de governos e redes escolares. Acesse aqui.

  • •Reportagem: Beatriz Araujo, Maria Clara Andrade e Marcela Coelho
  • •Edição de vídeo: Luis Nascimento
  • •Revisão: Estela Marques
  • •Supervisão: Larissa Leiros Baroni
  • •Tradutora de Libras: Jéssica Nascimento Moura

*Para ver a versão desse vídeo com audiodecrição, clique aqui

Fonte: Redação Terra
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