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Lesão corporal cresceu 246% em condomínios nos últimos cinco anos  Foto: Getty Images

Moradora revela que condomínio é dividido entre torre do amor e do inferno: 'Ter vizinho é como jogar na loteria'

Conforme levantamento exclusivo do Terra, casos de lesão corporal em condomínios de São Paulo tiveram súbito aumento nos últimos 5 anos

Imagem: Getty Images
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12 out 2025 - 04h59
Analisando os dados levantados, é possível notar que os casos de violência física em condomínio vem protagonizando uma onda crescente
Analisando os dados levantados, é possível notar que os casos de violência física em condomínio vem protagonizando uma onda crescente
Foto: Getty Images

"Ter vizinho é como jogar na loteria". Lúcia Mendes*, de 42 anos, não teve muita sorte ao mudar para um condomínio em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, há dois anos em busca de uma ambiente mais controlado, onde os dois filhos pudessem brincar com segurança e conforto em áreas livres.

  • Esta reportagem faz parte da série Vizinhança em Guerra, que aborda a crescente violência em condomínios na cidade de São Paulo a partir das histórias de moradores vítimas de agressões físicas, verbais e até emocionais.

Embora tente levar boa parte dos conflitos com humor, não esconde que, no fundo, existe uma preocupação real com os episódios presenciados. Em um dos casos mais graves, presenciou a agressão de um morador ao porteiro após uma encomenda ser extraviada.  

“Às vezes, você vê no aplicativo que a encomenda foi entregue, mas chega na portaria e não encontra nada. Muitas vezes, entregam para a pessoa ou apartamento errado --isso já aconteceu bastante. Por causa dessa confusão na administração de correspondências, já teve morador que partiu para cima do porteiro. Foi agressão mesmo. No meu ver, se você recebe algo que não é seu, o mínimo que se espera é que devolva, não é mesmo?”, contou Lúcia Mendes, em entrevista exclusiva ao Terra, mencionando que, em certos casos, foi necessário acionar a Polícia Militar para conter os ânimos.

O condomínio onde Lúcia mora possui três torres, e, segundo ela, cada uma ganhou um apelido relacionado às reclamações mais frequentes dos moradores: torre da droga, do amor e do inferno. “Na primeira, onde eu moro, encontram restos de baseado [maconha] e pinos de cocaína vazios; na segunda, as reclamações são por causa de gemidos; e na terceira é onde tudo acontece”, explicou.

Em outro episódio de agressão, um morador --incomodado com o barulho que as crianças faziam na área da piscina, próxima à segunda torre-- resolveu, em diferentes ocasiões, arremessar pedras de gelo contra elas, atingindo um dos menores. A Polícia Militar foi novamente acionada, e o caso virou pauta constante nas assembleias. 

“Lembro que gerou muita comoção, principalmente por envolver crianças. Elas ficam na área da piscina, mesmo sem brincar na água, porque falta espaço de lazer. Sei que, quando descobriram o apartamento do vizinho responsável, tentaram confrontá-lo, bateram na porta, mas ele não atendeu. O que soube é que a polícia precisou intervir e o caso está, agora, na Justiça.”

‘Pedi uma medida protetiva contra minha vizinha’

Moradores relatam casos de violência física em condomínios de São Paulo
Moradores relatam casos de violência física em condomínios de São Paulo
Foto: Getty Images

Já Roberta Silva*, de 54 anos, comprou um apartamento em um condomínio no bairro do Socorro, na Zona Sul de São Paulo, com o intuito de realizar o sonho da casa própria. Porém, em menos de um ano, percebeu que a tranquilidade e o conforto não se tornariam realidade tão cedo. 

Em três anos no condomínio, Roberta já passou por diversos episódios de estresse — tantos que, segundo ela, “não dá nem para contar nos dedos das mãos”, e ela tentou. Recentemente, ela chegou a pedir uma medida protetiva contra sua vizinha no prédio.

O caso teve início poucos meses após a entrega do condomínio pela construtora. Em uma noite, Roberta passou a ouvir gritos de socorro e sons de briga vindos de um apartamento próximo. Ao conversar com outros moradores por meio do grupo de WhatsApp do condomínio, descobriu que não era a única a ouvir os barulhos. No entanto, ninguém sabia exatamente de qual unidade partiam os sons. 

Durante uma nova briga, Roberta foi até a varanda e teve um choque: viu sua vizinha, que mora em um andar superior, sendo agredida pelo marido na sacada do próprio apartamento. Segundo ela, o homem esbofeteou a companheira e a empurrou contra o parapeito metálico da área externa. A moradora acionou a Polícia Militar e autorizou a entrada dos agentes. A viatura deixou o local sem levar o agressor, e os gritos cessaram temporariamente.

Na mesma época, Roberta, junto de outros moradores, organizou uma campanha de conscientização contra a violência doméstica, distribuindo informativos pelo condomínio e promovendo palestras para ajudar mulheres a identificar e denunciar agressões. No entanto, com o passar do tempo, ela começou a sofrer retaliações e ameaças.

“Ela [a vítima de agressão] se voltou contra mim. Eles continuaram juntos, e agora ela acha que eu invadi a relação deles. Em um dos dias em que chamei a polícia, ela estava apanhando, quase pendurada na janela, gritando. Agora ela vive me ligando –de madrugada, de tarde, de manhã, à noite– briga, reclama, diz que estou fazendo barulho. E, na última ligação, me ameaçou de morte e disse que ia esfaquear minha filha.”

Diante das ameaças, Roberta foi obrigada a entrar com um pedido de medida protetiva contra a vizinha. Ela chegou a tentar uma reunião de reconciliação mediada pela administração do condomínio, mas a mulher –que ainda vive com o agressor– recusou a proposta. O caso segue sem resolução e deixa Roberta, que trabalha fora, assim como o marido, em constante receio de permitir que a filha adolescente circule sozinha pelas áreas comuns do condomínio.

Lesão corporal em condomínios cresceu 246%

Conforme levantamento realizado pela reportagem do Terra, em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os casos de lesão corporal em condomínios cresceram 246% nos últimos cinco anos. De janeiro a julho de 2020, foram registrados 272 casos de violência física dentro de empreendimentos e edifícios residenciais. Já no mesmo período de 2025, esse número chegou a 941 ocorrências --ou seja, quase triplicou.

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A análise dos dados aponta que a escalada da violência física em condomínios coincide com o início da pandemia da covid-19, oficialmente declarada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Desde então, o aumento tem sido constante. Considerando apenas os primeiros semestres dos últimos cinco anos, o único momento em que houve uma leve redução foi em 2023, com 701 ocorrências  –uma queda de 5% em relação a 2022, que teve 740 registros.

Entretanto, em 2024 e 2025, os casos voltaram a crescer em ritmo acelerado. Foram 717 registros em 2024 (aumento de 2%) e 941 em 2025 (salto de 31% em relação ao ano anterior).

O cenário ainda pode piorar se considerarmos números anuais dos casos de lesão corporal. Nesse panorama, o levantamento do Terra indica que o tipo de crime começou a crescer na pandemia e não reduziu desde então. Até em 2023, que apresentou queda no primeiro semestre, se analisarmos os registros do ano inteiro, terminou com recorde de 1.475 ocorrências, contra 1.415 de 2022. E a expectativa é que esta marca de 2024, no caso 1.712, seja batida em breve, visto que, nos primeiros sete meses de de 2025, os casos já atingiram chegaram a 941, o que representa 54,9% do total correspondido.

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É difícil mapear um único motivo apenas para tal cenário, mas um dos fatores correlatos para o aumento de casos é a ininterrupta construção de condomínios na cidade. Conforme um laudo divulgado pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), com dados coletados entre 2000 e 2020, a cidade possui mais apartamentos do que casas em seu perímetro há anos. Em 2020, as unidades de apartamentos já representavam 1,38 milhão dos imóveis da cidade, enquanto as casas horizontais eram cerca de 1,37 milhões.

Em 2024, o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que o Estado de São Paulo possui 4,8 milhões de condomínios em seu território, sendo 1.958.072 deles com mais de 100 unidades habitacionais cada um. Com isso, é fato que estamos tendo que conviver cada vez mais ‘colados’ a nossos vizinhos e, digamos, em comunidades mais populosas, o que pode explicar a ‘pandemia de conflitos’ em condomínios que estão estampando o noticiário não apenas paulista, mas do País todo.

Como lidar com violência física em condomínios

Renato Daniel Tichauer, Fundador e Presidente da Assosíndicos, em gravação
Renato Daniel Tichauer, Fundador e Presidente da Assosíndicos, em gravação
Foto: Reprodução | Instagram

Para Renato Daniel Tichauer (1956-2025), presidente da Associação de Síndicos de Condomínios Comerciais e Residenciais do Estado de São Paulo (Assosíndicos), os casos de violência física são crescentes. Na visão dele, é importante que sindicância e moradores denunciem os episódios, inclusive, porque não se queixar pode implicar em acusação por omissão. “Os síndicos e moradores têm o dever de denunciar o abuso que está ocorrendo dentro de uma unidade autônoma ou com funcionários, caso contrário, podem responder por negligência ou omissão. [Assim como tem o dever de] denunciar as ameaças que recebem”. 

Renato afirma que, por mais que seja regente de um empreendimento, os poderes dos síndicos são limitados. Dito isso, além de lavrar boletim de ocorrência, ele aconselha os moradores sempre a recorrerem à medidas administrativas, pois são formas de registrar o que está acontecendo dentro do condomínio, a frequência e a escalada dos fatos. “Sempre o caminho são medidas administrativas e se não derem resultado, a aplicação de medidas pecuniárias, financeiras, multas até o décuplo, ou seja, até dez vezes a taxa ordinária mensal, também prevista no código civil.”

De acordo com o presidente da Assosíndicos, não há saída fácil ou rápida para violência física em condomínios. Entretanto, uma medida de prevenção que poderia colaborar na redução de casos seria a realização de campanhas e, talvez, palestras sobre convivência. “Na minha opinião, é necessária uma conscientização dos novos condôminos, que nem sempre tem a cultura do que é viver e conviver em um condomínio. [Explicar] que deve se tentar preservar o bom senso e o direito de vizinhança. Afinal, direitos e deveres devem ser cumpridos por todos.”

Caso nada disso funcione Renato afirma que existe um dispositivo legal previsto no código civil que é atribuído ao condômino antissocial. "Em casos como esse em que não há saída, após minuciosa avaliação, o agressor reincidente pode ser retirado do condomínio por via judicial, restabelecendo desta forma a integridade física e emocional dos moradores de outras".

Violência em condomínio é questão de saúde

Cintia Castro, psicanalista e mediadora de conflitos em condomínios por anos
Cintia Castro, psicanalista e mediadora de conflitos em condomínios por anos
Foto: Arquivo pessoal

Apesar de a lesão corporal ser frequentemente associada à agressão física, de acordo com o Código Penal Brasileiro, o delito pode ser enquadrado também quando se gera prejuízo à saúde de outros. Conforme Cintia Castro, psicanalista e mediadora de conflitos em condomínios por anos, a constante convivência com violência ou sentimento de ameaça pode trazer prejuízos não só à integridade física, mas também mental. 

“Quando você acaba tendo uma briga no condomínio e isso não afeta o seu cotidiano, aí é só um momento de raiva, de fuga. Agora, se começa a afetar o seu cotidiano, onde você começa a se isolar, evitar frequentar as áreas comuns por medo, você evita vizinhos, começa a sair de grupos de WhatsApp, é um sinal de alerta. Então, a primeira coisa a se fazer é pedir ajuda para quem mora com você. Se não tiver ninguém, procure ajuda profissional. Porque você vai começar a ter um sofrimento interno que você não vai conseguir exteriorizar.”

Endossando o discurso, Paulo Porto, PhD em Psicologia Clínica e professor da PUC-PR, afirmou que os sintomas podem variar a depender de cada pessoa, mas se não tratados, podem evoluir para condições graves posteriormente. Segundo ele, as consequências por ignorar a saúde mental em casos como este, geralmente, são: agorafobia, depressão, crise de pânico, ansiedade, TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) e, por fim, traumas relacionados à violação da integridade física.

"A sintomatologia do estresse, muitas vezes, é similar à da ansiedade, antes de desenvolver alguma condição eu posso ter queda de cabelo, manchas na pele [...] Tem pessoas que vão somatizar mais por uma questão do sistema digestivo, por causa de alguma briga, então começa a ter gastrite, excesso de gases, às vezes até diarréias mais crônicas. Tem pessoas que afetam mais o sistema imunológico, então fica doente a qualquer momento. Tem pessoas que vão ter ali dor de cabeça, enxaquecas [...] ou começam a ter uma questão do sistema circulatório, então começa a ter ali às vezes até arritmia [...] ou respiratórias, a pessoa começa a ficar mais ofegante."

Com base nisso, se você está apresentando alguns desses sintomas com frequência, a orientação de ambos profissionais é buscar ajuda especializada. “Muitos problemas podem demorar muito tempo para serem resolvidos, e sem a ajuda correta, pode ser bem mais difícil e traumático passar por experiências como essa”, encerrou Cintia Castro.

Fonte: Portal Terra
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