Rebeca Andrade revela choro por racismo com irmãos e diz: 'Não sou robô'
Em entrevista ao Terra NÓS, Rebeca relembra casos de racismo e diz saber que precisou se esforçar mil vezes mais para chegar onde está
Foram muitas repetições do salto ‘cheng’ até chegar à execução perfeita. Tantas que Rebeca Andrade sequer consegue enumerar. Foram repetições exaustivas que duraram anos, mas que ao pisar os pés no solo após voar em seu primeiro salto no Pan de Santiago, a ginasta sequer teve dúvidas: “Caraca, cravei”, pensou.
Em entrevista exclusiva ao NÓS, Rebeca detalha o que sentiu ao subir no lugar mais alto do pódio no torneio do mês passado e diz que, agora, direciona toda sua energia às Olimpíadas. Relembra que, ao voltar dos Jogos de Tóquio, em 2021, viveu um dos momentos mais marcantes como pessoa preta: ser recebida por um grupo de mães e filhos negros que a agradeceram por ser mais um exemplo para eles.
No mês da Consciência Negra, Rebeca relembra casos de racismo envolvendo seus irmãos que a faziam chorar e diz saber que precisou se esforçar mil vezes mais para chegar onde está. Mas o que importa é que chegou.
Mini-férias e foco olímpico
Rebeca terá dez dias de férias até retomar os treinos com força total. As Olimpíadas de Paris acontecem na metade do próximo ano, mas ela terá algumas competições no caminho. Sua rotina é totalmente focada nas competições: acorda, limpa a casa e vai para o ginásio, onde tem fisioterapia e fica até o fim do dia.
Não é simples, mas já foi bem mais difícil. Rebeca começou na ginástica aos cinco anos, quando a tia decidiu levá-la junto dos primos para um teste a ser realizado pela prefeitura de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. “O dia do teste, para mim, foi um dia de brincadeira. Me diverti muito e passei”, conta.
Começaria, então, uma manobra familiar para que a menina de cinco anos conseguisse participar dos treinos. O ginásio ficava longe de casa, e a família não tinha dinheiro para que Rebeca se deslocasse de ônibus. Sua mãe, que trabalhava como empregada doméstica, passou então a ir ao trabalho a pé. O dinheiro da condução ela dava à filha.
“Com o passar dos anos nessa rotina, minha mãe foi ficando muito cansada, porque ela ia a pé para o trabalho, trabalhava como empregada o dia todo e voltava a pé. Então, meu irmão começou a juntar e vender latinhas e, com o dinheiro das vendas, comprou uma bicicleta velhinha. Passou a me levar todos os dias para o ginásio de bicicleta, e minha mãe voltou a trabalhar de ônibus”, conta a atleta.
Antirracismo na pele
Ainda hoje, atleta do Flamengo e viajando o mundo pelo esporte, Rebeca tem uma ligação bastante forte com a família. Quando se reúnem, se lembram de toda a dificuldade do início e de como valeu a pena cada esforço para que, hoje, Rebeca esteja perto de se tornar a maior atleta olímpica da história do Brasil.
“A gente tinha tudo o que importava: amor, carinho, apoio. Sempre tive pessoas ao meu lado que me apoiavam totalmente, inclusive funcionários do ginásio. Lembro de todas essas pessoas com muito carinho porque, sem elas, não seria quem sou hoje.”
Mas antes dela, outras precisaram vir e abrir caminhos. Daiane dos Santos é uma delas, e foi em Daiane que Rebeca se inspirou desde cedo. Não tinham apenas o talento para a ginástica em comum, mas a cor da pele, identificação maior que qualquer outra coisa. Rebeca sabe disso.
“Fico muito feliz por representar algo tão grandioso como a negritude, por ser mais uma referência negra para todas as crianças e adultos. Me sinto honrada e orgulhosa da minha história, por ser importante para quem vem aí, assim como a Daiane foi para mim.”
Apesar de nunca ter sido alvo direto de racismo, Rebeca viu seus irmãos serem frequentemente atacados pela cor da pele, o que a machucava. “Nascer preta fez com que eu tivesse consciência sobre racismo desde o primeiro dia de vida. Quando via meus irmãos não sendo poupados do racismo, eu chorava. Era muito doloroso. Mas eles não perderam a essência por isso, e eu aprendi que precisaria seguir o mesmo caminho”.
“Só quem sente na pele sabe como dói. Só quem vê alguém amado sendo vítima de racismo sabe como dói. Mas aprendi a nunca colocar a cor da minha pele como obstáculo na minha vida. Minha cor não me para, e quero mostrar que independentemente dela, da minha condição financeira e de onde eu vim, posso alcançar o que eu quiser", diz.
Talvez eu tenha feito duas, três, quatro vezes mais que pessoas brancas para chegar onde eu cheguei, mas cheguei. É o que importa.
Amizade entre campeãs
O salto que alçou Rebeca ao nível de campeã panamericana foi, também, o que a fez vencer a amiga-rival Simone Biles no Mundial de Ginástica, em outubro. A rivalidade, entretanto, está longe de ser tratada como algo negativo entre as duas. Simone celebra os feitos de Rebeca, que celebra as conquistas de Simone. É uma rivalidade que inspira tanto uma como a outra.
Simone encabeçou a discussão sobre saúde mental na ginástica, endossada por Rebeca, que afirma cuidar periodicamente da própria mente. Faz terapia, agradece à psicóloga pelo acompanhamento eficaz e tenta se manter firme. “Sou muito tranquila com resultado, sei que não sou obrigada a voltar para o Brasil com medalha. Tento entender que não sou um robô, que não tem um programa dentro do meu corpo e mente que me faça fazer tudo com perfeição. Mas estou sempre em busca dela”, diz.
“A única pessoa a quem posso controlar sou eu mesma, então as expectativas de outras pessoas não interferem no meu planejamento. Mantenho minha cabeça ocupada, o que considero importante, e foco em dar o meu melhor. Minha família e fãs me apoiam, sabem que a ginástica é difícil. Converso muito com a minha psicóloga, que me acompanha desde a infância, e se não fosse por ela eu não conseguiria me respeitar e entender meus limites.”
Paris é logo ali
O Natal de Rebeca vai ser no ginásio, aperfeiçoando o que já parece perfeito. No Pan, foram quatro medalhas, mas seu foco agora é olímpico, totalmente. Os treinos se intensificam a cada mês, assim como a fisioterapia, e seu objetivo é ter o melhor resultado possível nas Olimpíadas de Paris, em 2024. “Vou começar o ano com sangue nos olhos”.