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Céu Albuquerque, primeira pessoa do Brasil a obter o registro de intersexo  Foto: Arquivo Pessoal

Céu Albuquerque, a primeira e única pessoa a ter o registro de intersexo no Brasil: 'É o que eu sou'

Submetida à mutilação genital quando bebe, pernambucana fez avanço significativo na luta da comunidade por direitos

Imagem: Arquivo Pessoal
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20 mai 2024 - 06h00
(atualizado às 17h46)

Em julho de 2021, Céu Ramos de Albuquerque, de 33 anos, deu início à uma jornada inédita no país: ter em sua certidão de nascimento o registro de que é uma pessoa intersexo. Foram quase três anos até a conquista que abre as portas para que cerca de 20 milhões de pessoas no Brasil passem a ter reconhecimento e seus direitos garantidos. 

Pessoas intersexo foram durante décadas chamadas de hermafroditas, termo pejorativo hoje eliminado dos debates sobre o tema e no imaginário popular se refere apenas as pessoas que nascem com ambos os orgãos genitais, no entanto, a intersexualidade vai muito além disso. 

Foi ao longo dos anos e por meio de pesquisas na internet que Céu entendeu o que era intersexualidade e foi em busca de mais informações e pareceres médicos. 

Sempre falei abertamente sobre a hiperplasia e quando soube que intersexo era um termo guarda-chuva, passei a lutar nesse movimento, a construir meu entendimento de 'isso aqui é o que eu sou', compreendi que me foi negado o meu corpo. Foi uma validação de uma identidade biopolítica, explica. 

Foto: Divulgação/ABRAI

Segundo cálculos da ONU 1,7% dos bebês nascem intersexo, ou seja, contam com características sexuais que não se enquadram nas noções binárias de homem ou mulher.

Um levantamento da própria Céu, que é ativista da causa intersexo, além de engenheira e fotógrafa, junto das pesquisadoras Thais Emília de Campos dos Santos e Dionne do Carmo Araújo Freitas, aponta que 11% da população mundial é intersexo, o que no recorte do país chega no montante de 20 milhões de pessoas. 

Os dados estão publicados no livro “150 Variações Intersexo“, que mapeou ainda, como o título aponta, 150 variações intersexo, como questões de disfunção hormonal, mutação cronossômica, má formação no sistema reprodutor, entre outros. 

A Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), que publicou o livro, cita a organização australiana Intersex Human Rights, que define as pessoas Intersexo "como as que têm características sexuais congênitas, não se enquadrando nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos, as quais criam riscos ou experiências de estigma, discriminação, ódio e danos".

Já os "Princípios de Yogyakarta" documento sobre direitos humanos nas áreas de orientação afetiva sexual e identidade de gênero, resultado de uma reunião internacional de grupos de direitos humanos na  Indonésia definem aspectos sexuais "como sendo características físicas relacionadas ao sexo, incluindo cromossomos, órgãos genitais, gônadas, hormônios e outras anatomias reprodutivas, e atributos secundários que aparecem na puberdade".

'Foi negado o meu corpo'

Céu é uma pessoa intersexo por ter hiperplasia adrenal congênita, condição genética que afeta a produção de cortisol e influencia o desenvolvimento sexual e a formação dos órgãos genitais externos. Ao nascer passou por um procedimento cirúrgico para chamada "adequação" de genital. 

"Eu passei por uma mutilação genital. Eu sempre soube que tinha hiperplasia adrenal congênita, mas não entendia que isso era uma variação intersexo, eu cresci acreditando que eu era uma menina e que tinha nascido com um problema", conta. 

Para Céu, a mutilação genital a qual foi submetida é um projeto de poder, que visa "binarizar uma criança, enquadrá-la em um modelo patriarcal, além de garantir receita para os profissionais e hospitais, que lucram muito com os procedimentos". 

No Brasil, a cirurgia em bebês intersexo tem o aval do Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio da resolução 1664/2003 que Céu e o movimento lutam para que seja suspenso. 

"Quando você lê a resolução percebe que o único objetivo é binarizar o corpo da criança, dizem que é para que a criança não sofra preconceito, mas não é o corpo que tem que mudar, é a sociedade, para entender a corporeidade das crianças interesexo", dispara. 

Questão biológica

Foram quase três anos até ter a certidão atualizada em mãos
Foram quase três anos até ter a certidão atualizada em mãos
Foto: Arquivo Pessoal

Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), via o provimento 122/2021 estabeleceu que bebês interesexo tenha no registro de sexo na Declaração de Nascido Vivo (DNV), o termo ignorado, ao invés de masculino ou feminino. 

O que parece um avanço não é, porque o mesmo não é válido para a certidão de nascimento, e o termo sexo ignorado também não registra efetivamente que se trata de um bebê intersexo. 

E foi por isso que Céu buscou a retificação de sua certidão. Com o auxílio da Defensoria de Olinda (PE), cidade onde vive, deu entrada no processo que passou por várias etapas com pareceres favoráveis até chegar à  juíza. "Ficou mais de um ano na mesa dela, até que em fevereiro deste ano (2024), ela aprovou a mudança tanto de nome, quanto do campo sexo, de feminino para intersexo". 

"É muito interessante como temos diversos documentos com o campo gênero, incluindo a certidão de nascimento, que na verdade precisaria contar com o campo sexo biológico", aponta ela. 

A distinção se dá pela intersexualidade ser uma questão biológica, ao contrário das outras pautas da comunidade LGBTQIA+, que são do campo da orientação afetiva sexual e identidade de gênero. 

"Intersexualidade não é algo autodeclarado, é necessário que tenha um diagnóstico, laudo, pareceres médicos", explica. 

A mudança na certidão de nascimento já está abrindo novos horizontes. Hoje, o Ministério Público já está analisando o meu caso para demandar que a Receita Federal insira o campo intersexo no CPF, fazendo assim com que a gente consiga ter um número mais real de pessoas intersexo no país. 

Além disso, Céu pontua a importância de um Projeto de Lei que derrube de vez a resolução do CFM que autoriza a cirurgia em bebês intersexo apenas com fins estéticos, e também a criação de acessibilidade médica para pessoas intersexo e familiares, que demandam um acolhimento. 

E sobre a conquista da nova certidão de nascimento, como uma boa ativista, Céu declara: "Essa vitória não é só minha, quando entrei com o processo não foi por ego, foi algo bem pensado, uma luta não só por mim, mas por todos que virão e espero que traga bons resultados daqui pra frente".

Fonte: Redação Terra
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