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"O ouro está sujo de sangue yanomami", diz Davi Kopenawa

Líder yanomami acusa Bolsonaro de genocídio por permitir avanço do garimpo na terra indígena, o que deixou rastro de destruição e morte

10 fev 2023 - 12h35
(atualizado às 14h34)
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Davi Kopenawa aprendeu cedo que o homem branco representava uma ameaça para o seu povo. Sua família foi quase totalmente dizimada por doenças trazidas pelo contato com servidores do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no final dos anos 1950. A tragédia se repetiria na década seguinte, com a entrada de agentes da organização New Tribes Mission no território para catequizar os indígenas, o que ocasionou uma segunda epidemia nas comunidades.

Agora, o xamã e líder do povo Yanomami luta contra mais uma onda de mortes e invasões. O avanço do garimpo ilegal no território ao longo dos últimos anos gerou uma crise humanitária. A presença de estimados 20 mil garimpeiros na região deixou um rastro de fome, doenças e violência.

Nesta semana, teve início a operação de retirada dos invasores da terra indígena. Kopenawa elogia a ação, com a desconfiança de quem viu o problema voltar após a remoção de 40 mil garimpeiros nos anos 1990.

"Eu ficaria muito feliz se o Lula conseguisse fazer o que prometeu. Se acontecer, eu vou voltar a falar com vocês para agradecer. Neste momento, não vou agradecer. Só depois, quando estiver tudo limpo e resolvido - com casa de vigilância para não entrar mais garimpeiro e proibição para o uso de gasolina de avião", afirma o xamã, em entrevista à DW.

Apesar do "pé atrás", Kopenawa consegue agora olhar para o futuro com esperança. Desde 2015, ele vem denunciando o avanço do garimpo ilegal no território yanomami. Os apelos foram ignorados pelas autoridades. O ex-presidente Jair Bolsonaro esteve na região uma única vez, em 2021, durante a pandemia. Na ocasião, inaugurou uma ponte que facilitava o acesso de garimpeiros e defendeu a mineração em terras indígenas. Foi em seu governo que a presença de invasores explodiu.

"O Jair Bolsonaro é genocida. Ele matou a água, a floresta, os peixes e as nossas crianças", diz o líder yanomami. "Eu estou me sentindo triste, revoltado e com vontade de me vingar. A alma do xamã está chorando."

Kopenawa chama atenção, ainda, para a importância do apoio da comunidade internacional. Ainda não foram criadas normativas internacionais que visem a proibir o comércio de minérios extraídos da Amazônia, na linha do que a União Europeia tem buscado fazer com os "minérios de sangue" da África. Um estudo do Instituto Escolhas mostra que, em 2021, 52,8 toneladas de ouro comercializadas no Brasil tinham graves indícios de ilegalidade, o que corresponde a mais da metade (54%) da produção nacional.

"Com o preço doouro tão alto, os garimpeiros vão continuar a trabalhar. Os garimpeiros não têm terra para eles trabalharem. Garimpeiros são pobres. Quem está rico é dono de avião, da loja de ouro. Esse pessoal está faturando com o ouro retirado da Terra Yanomami. É ouro com sangue dos meus filhos, meus sobrinhos, primos, que morreram, o garimpo matou. O ouro é sujo de sangue do meu povo", atesta Davi.

O líder yanomami esteve em Nova York na semana passada, a convite dos organizadores da exposição A luta yanomami. Há mais de 30 anos, Kopenawa viaja o mundo para defender seu povo e a Amazônia. Com o antropólogo belga Bruce Albert, escreveu o livro A Queda do Céu, lançado em 2010. A obra é tida como um marco transformador, pela inversão de perspectiva que coloca o indígena na condição de observador, em vez de objeto. Em 1989, ele recebeu o prêmio Global 500 da ONU e, em 2019, foi laureado com o Right Livelihood Awards, conhecido como Nobel alternativo.

DW: Enquanto liderança yanomami, como você se sente ao ver seu povo sofrer com doenças, fome e violência?

Davi Kopenawa: O meu sentimento não vem de hoje. Quando eu era pequeno, nos meus 10, 11 anos, comecei a sofrer com a chegada do homem branco. O que acontece agora, 2023, é muito ruim para mim, para todo o povo Yanomami. O sentimento é de luto. Estou de luto por causa dos nossos filhos, nossas filhas, nossas netas, nossos irmãos e irmãos. Todos estão contaminados. O garimpo está lá nas florestas, destruindo os igarapés, cavando buraco, deixando a água suja, matando peixe e usando mercúrio. Mercúrio é uma doença.

Há sete anos, eu venho denunciando e avisando ao governo federal, ao Ministério Público, à Funai e outros parceiros que trabalham com meu povo Yanomami. Tem 60 mil a 70 mil garimpeiros no território. Eles estão junto com autoridades, deputados, senadores, que financiam e apoiam a obra do garimpo. É por isso que ficou muito ruim, e a doença está lá hoje.

Antigamente, não tinha tudo isso. Antigamente, era um lugar sadio, com beleza, porque não tinha garimpo. Agora que o garimpo está lá, contaminou a água e nosso sangue, pela doença da malária. A malária mata. E todo mundo está com fome. O garimpo fica de um a dois anos trabalhando sem sair das comunidades onde se instalam. Então, só aumentaram as doenças. As crianças, de 11 a 14 anos, ficam desamparadas quando o pai e a mãe morrem. A criança fica doente, não pode procurar comida. Então, é uma mistura da fome com a doença.

Eu não paro de pensar, não paro de pensar nisso. É porque eu sou yanomami. Eu sou a liderança do meu povo Yanomami, então tenho o direito de reclamar e avisar vocês, para vocês saberem, divulgarem e denunciarem.

Qual é o papel do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro na crise humanitária vivida pelo povo Yanomami?

O Jair Bolsonaro é genocida. Ele matou a água, a floresta, os peixes e as nossas crianças. Elas não têm culpa. O garimpo chega lá como se fosse dono da casa. Eles tratam nossos filhos como se fossem animais, galinha, cachorro. Trazem bebidas alcóolicas e o alimento da cidade, que não é sadio, não é bom para o povo da floresta. As crianças comem o resto de comida dos garimpeiros, e as doenças são transmitidas pela saliva - gripe, pneumonia. Isso passou para nossas mulheres, nossos irmãos.

O garimpeiro também é usado, explorado pelos homens que têm dinheiro e poder. Eles são mandados e são viciados. Faz tempo que o garimpo está matando meu povo da floresta. A doença está lá na minha casa. Os garimpeiros também estão dando armas de fogo para os yanomami ficarem quietos, não brigarem contra eles. É o jogo deles.

Eu peço para vocês apoiarem a minha luta, ficarem de olho, porque nosso povo Yanomami, originário, está precisando da ajuda de vocês. Vocês têm força para pressionar. O governo que ficou quatro anos fez muito mal para o meu povo, deixou as pessoas doentes. Você precisa espalhar, todo mundo precisa saber que a Floresta Amazônica não está protegida. Os filhos da Amazônia também não estão protegidos, e estão doentes.

Esta minha fala vai esparramar para poder resolver os problemas que estão sendo causados: fome, doença e morte. Eu estou me sentindo triste, revoltado e com vontade de me vingar. A alma do xamã está chorando. Hoje, o governo é outro. O Lula também tem que fazer um trabalho bom, não pode repetir o que o governo anterior fez.

O governo federal atua agora para retirar os garimpeiros do território Yanomami. Você tem esperanças de que a situação melhore?

Eu sou desconfiado, desde pequeno, vendo o que aconteceu com o meu povo. Eu conheço o presidente Lula. Quando ele estava querendo se eleger presidente, eu o conheci. Ele é de uma família pobre e conseguiu pensar em ajudar os parentes que estão precisando de apoio. A minha esperança está no que ele falou. Estou calado, não queria atrapalhar. Deixa ele fazer o plano de retirada dos garimpeiros da Terra Yanomami, como ele prometeu, limpar o lugar do meu povo e mandar os garimpeiros de volta para a casa deles. Eu queria que o Lula os levasse de volta para onde eles nasceram e moraram, seja no Maranhão, Ceará, São Paulo. Eu só vou acreditar quando eles realmente tirarem tudo. Tem que ser como uma rede que pega os peixes, rede grande, para pegar todos os garimpeiros que estão lá, não deixar nenhum escondido, varrer tudo para levar de volta para onde eles moram. É isso que estou esperando.

Eu queria também pedir para ele construir a casa de vigilância do nosso território, para vigiar o povo que está lá, envenenado, doente, para os garimpeiros não voltarem. Tem que ter uma casa vigilância para não deixar mais ninguém colocar a gente em perigo. É isso que eu vou pedir. Esta é a minha esperança, e vamos ver o que ele vai fazer de verdade. Eu não quero que ele fique prometendo e enganando. Não sou uma liderança para ninguém enganar. Ele tem que cumprir as palavras que saíram pela boca e nós escutamos. Eu também queria que todas as autoridades dessem apoio, ministros, governadores. E os europeus também têm que somar forças. Uma pessoa sozinha não tem poder, é fraca. Eu quero que vocês gostem do que eu estou falando. É preciso apoiá-lo e mandar recursos. Sem dinheiro, ele não vai fazer nada, porque o trabalho de retirada do garimpeiro custa caro. Sem dinheiro, o homem não trabalha.

Eu ficaria muito feliz se o Lula conseguisse fazer o que prometeu. Se acontecer, eu vou voltar a falar com vocês para agradecer. Neste momento, não vou agradecer. Só depois, quando estiver tudo limpo e resolvido - com casa de vigilância para não entrar mais garimpeiro e proibição para o uso de gasolina de avião. Tem que proibir tudo. E eu espero que o Lula tente derrubar o preço do ouro. Com o preço do ouro tão alto, os garimpeiros vão continuar a trabalhar. Os garimpeiros não têm terra para eles trabalharem. Garimpeiros são pobres. Quem está rico é dono de avião, da loja de ouro. Esse pessoal está faturando com o ouro retirado da terra Yanomami. É ouro com sangue dos meus filhos, meus sobrinhos, primos, que morreram, o garimpo matou. O ouro é sujo de sangue do meu povo.

Por que o território é tão importante para o seu povo?

Para nós, povos originários, que há mais de 522 anos estamos morando lá, naquela região, a floresta é uma vida que a natureza criadora deixou para o povo Yanomami. Omama é nosso Deus, Omama plantou a floresta, os rios, terra, alimento, para o povo Yanomami viver em paz. A gente usa a terra para trabalhar, caçar, usa como saúde. A terra sustenta a nossa alimentação. Sem a terra, não tem alimento. Sem a água, vamos morrer de sede. Sem a floresta, não tem fruta, castanha, buriti, açaí. A terra é feita para o povo que mora lá há muitos anos. É um território que nós conquistamos, o governo não deu. Muita gente está de olho na Terra Yanomami como se fosse mercadoria, em busca de ouro, madeira, terra boa, soja, gado. É por isso que o mundo inteiro está de olho. Se a terra não fosse rica, o governo não olharia para mim. Isso também é muito perigoso para mim, porque as autoridades estão interessadas em tirar riqueza de onde os yanomami estão morando. A terra é vida, o lugar onde nós nascemos, onde vamos morrer, onde nossas gerações vão continuar. É uma casa para o povo originário.

Davi Kopenawa Yanomami: "Estou me sentindo triste, revoltado e com vontade de me vingar. A alma do xamã está chorando."
Davi Kopenawa Yanomami: "Estou me sentindo triste, revoltado e com vontade de me vingar. A alma do xamã está chorando."
Foto: DW / Deutsche Welle
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