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Clássico do Dia: 'Quando os Homens São Homens', o filme mais triste já feito

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este de Robert Altman sobre o fracasso de um empreendimento comercial no quadro do nascimento de uma nação

10 set 2020 - 09h10
(atualizado em 29/10/2020 às 10h45)
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Robert Altman iniciou-se na direção na vertente da juventude transviada em 1957, com The Delinquents, interpretado pelo futuo diretor Tom Laughlin. Tinha 32 anos. Aos 45, em 1970, ganhou a Palma de Ouro em Cannes com a comédia de guerra MASH. Seguiram-se Voar É com os Pássaros e o western Quando os Homens São Homens/McCabe & Mrs. Miller, que ele pretendia fazer com Elliott Gould, mas terminou aceitando Warren Beatty por facilidade de produção. Altman emendou Imagens antes de fazer, agora sim com Gould, Um Perigoso Adeus/A Long Goodbye, um policial na vertente noir, à maneira de Raymond Chandler.

Talvez esse título - Imagens - seja revelador, pois mostra uma tendência de Altman, que sempre abordou os gêneros para desconstruir seus códigos tradicionais. Ainda nos 70 ele fez sua obra-prima, Nashville, atravessando depois uma fase difícil nos 80, antes de ressurgir nos 90. A fase que vai de O Jogagor, de 1992, a Assassinato em Gosford Park, de 2000, é das melhores. Quando os Homens São Homens. O título brasileiro tem a ver com uma visão romântica da conquista do Oeste como terra de heróis. Não encontra guarida no revisionismo do autor. Desde que o próprio John Ford filmou a degradação dos mitos em O Homem Que Matou o Facínora, de 1962, o foco crítico tornou-se dominante . O filme poderia chamar-se Quando os Homens não Prestam, ou São Todos Canalhas.

McCabe and Mrs. Miller, Warren Beatty e Julie Christie, na fase em que mantinham uma intensa ligação que resultou em pelo menos três filmes - o Altman, Shampoo, de Hal Ashby, que, coincidência ou não, havia sido montador de Altman, e O Céu Pode Esperar, codirigido pelo próprio Beatty (com Buck Henry). McCabe é um jogador que chega, debaixo de chuva, a Presbyterian Church. O detalhe está longe de ser insignificante. A cidade está sendo construída com madeira bruta arrancada à floresta. O céu é cinzento e, quando não é a chuva, é a neve. Ele chega ao precário saloon, arma sua mesa de jogo - uma simples toalha - e começa a dar as cartas. Depena os adversários e usa o dinheiro para comprar três mulheres. Uma velha, outra gorda e a terceira desdendentada. Chega a madame - Mrs. Miller -, com quem McCabe funda um negócio. Tornam-se sócios, e amantes. O plano é montar um bordel com salão de jogos e outro, de banhos. A higiene chega ao Oeste selvagem.

Prebyterian Church cresce, atrai a escória do Oeste. Logo no começo, o brutal assassinato do personagem interpretado por Keith Carradine, no primeiro de seus três filmes com o diretor - e a sua estreia no cinema -, prepara o público para a violência que virá, e o que poderá ocorrer com McCabe. Carradine faz um moleque atrevido. Passou a noite com as p... Na saída, ao atravessar a ponte, reencontra o pistoleiro que diz, friamente que vai matá-lo. E mata. No western de Altman, ninguém escapa a seu destino. Vale lembrar que o gênero, na tradição de Hollywood, desenvolveu-se associado aos planos gerais, que valorizam a paisagem. Um homem, um cavalo, uma arma e a pradaria imensa - nos primórdios do western não eram necessários mais que esses elementos básicos. Ford criou sua grande obra no marco de uma paisagem grandiosa, Monument Valley. Sam Peckinpah introduziu as metralhadoras e os carros, como signos de transformação histórica. O gênio de Altman, pois foi um toque de gênio, consistiu em fazer da própria cidade em construção uma personagem. Ali dentro, sitiados pela neve, a chuva, operários da construção e mineradores ganham, gastam, envidividam-se, trabalham mais ainda - até que chegam os pistoleiros. O décor é de barro e neve, e o tempo todo a direção de arte faz com que a construção dos espaços sacros (a igreja) e profanos (o bordel e o saloon) seja o contraponto aos conflitos que fazem avançar a narrativa.

John Ford mostrou como se constrói uma civilização. Altman documenta a construção do espaço, mas não tem o amor de Ford pela recriação da vida comunitária. A civilização é um sonho, ou melhor, um delírio, e o desenlace violento se faz paralelamente à imagem de Julie/Mrs. Miller fumando ópio com o olhar perdido, prenunciando o escape na droga dos gângstes judeus de Sergio Leone em Era Uma Vez na América. O Altman é um filme de atmosfera - o diretor chegou a revelar que teve a ideia ouvindo as canções cabareteiras e etílicas de Leonard Cohen. Deu-se conta de que era assim que visualizava o 'seu' Oeste'. As prostitutas assaltam os clientes, os assassinos são sádicos, o pastor é covarde, a Mrs. é uma capitalista corrompida que venderia a própria mãe, se tivesse uma, e McCabe é um arrivista sem moral, mas não sem escrúpulos. É até motivo de atrito com a madame, que o ama.

Por que McCabe recusa a oferta da mineradora? Por que não tenta salvar a pele, por que não foge dos assassinos, mas os enfrenta? Por menos heroico que seja, é um homem com um código de ética e certamente não se compara à mineradora e seus sicários - o capitalismo nascente, nessa terra de bárbaros, não admite concorrência. Mrs. Miller tenta convê-lo de que errou ao rejeitar a oferta, ele tenta recuar, mas não tem volta. Seu destino está selado. Olha o spoiler - a determinação do amado de ir à luta atira a desesperada Mrs. Miller no ópio, em busca de acolhimento. Há algo de profundamente belo e triste neste desfecho, e Roger Ebert chegou a escrever, em A Magia do Cinema - Ediouro, 2003 -, que se trata de um dos filmes mais tristes já feitos, recheado por uma ânsia de amor e de abrigo que nunca virão. (Ebert também escreveu, e é verdade, que poucos diretores lograram fazer filmes perfeitos. O Altman de Quando os Homens São Homens é um deles.) Mais que uma pungente história de amor, é sobre o fracasso de um empreendimento comercial no quadro do nascimento de uma nação.

Não é McCabe e Mrs. Miller - e sim, McCabe & Mrs. Miller. Quem é esse homem? Quando chega a Prebyterian Church, ele não porta pistola - está mais para almofadinha -, mas a destreza com a garrucha indica que o jogador teve um passado com as armas. Um pistoleiro tentando redimir sua honra? Um derrotado fordiano disposto a resgatar sua grandeza? A relação com Mrs. Miller é mercantilizada - Constance (seu nome) cobra ao fazer sexo com ele, e numa cena, num solilóquio, McCabe queixa-se de que a parceira não veja a poesia armazenada em seu peito. Quando é atingido e talvez morra na neve, essa talvez seja sua sepultura, mas o manto branco promete também a definitiva purificação.

Sangue sobre a neve - com a cumplicidade de seu grande fotógrafo, Vilmos Zsigmond, Altman consegue criar beleza na tragédia. O negativo foi exposto para destruir a claridade - o diretor queria criar a sensação de coisa antiga, como se o mundo estivesse sendo visto por meio de um painel de vitral. E foi nesse filme que ele definiu a que se tornaria uma das características mais marcantes de seu estilo. O diálogo sobreposto teria surgido de maneira quase acidental . Em vez de usar potentes gravadores para captar a cena toda, Altman tentou uma experiência. Cada ator tinha o seu microfone pessoal ligado a um canal e ele descobriu que poderia manipular o som no estúdio. Isso se percebe desde o começo, na chegada de McCabe. O diálogo é desconexo. Uma frase solta aqui ("Ele já matou um homem"), outra ali ("Laura, o que teremos no jantar?"), longos silêncios, murmúrios. O som ambiente é tratado realisticamente num filme encenado, de época. Ao som soma-se a particular mobilidade de câmera, que parece solta entre os personagens e, a partir de Nashville, de 1975, essa virou uma marca registrada de Altman.

Paulo Francis achava que era uma lição assimilada de Luís Buñuel, mas que não torna menos original o recurso nos filmes do norte-americano. Uma palavra sobre Beatty. Altman queria Elliott Gould no papel, e ele foi magnífico em Um Perigoso Adeus, de 1973. Embora fosse um ano mais velho - nasceu em 1937 -, Beatty passava muito bem por garoto e Altman forçou-o a usar barba cerrada, o que deu outro look ao ator e favoreceu o personagem. Existiram de fato um McCabe e uma Mrs. Miller e, na puritana América do século 19, foram precursores no empreendedorismo da indústria do sexo. Conta a lenda que ela amarrou o amante para raspar sua cabeleira e deixá-lo careca. Julie está linda com o cabelo encrespado. Foi indicada para o Oscar de melhor atriz, que já recebera em 1965 - por Darling, a Que Amou Demais, de John Schlesinger -. mas era o ano de Jane Fonda, por Klute, o Passado Condena, de Alan J. Pakula. Altman morreu em 2006, aos 81 anos. Havia sido indicado cinco vezes para o Oscar de direção e naquele ano recebeu um prêmio honorário da Academia "por sua carreira que reinventou continuamente a arte cinematográfica, servindo de inspiração permanente para outros realizadores e o público".

Onde assistir:

  • À venda em DVD
Estadão
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