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Aos 91 anos, Clint Eastwood encanta e surpreende com 'Cry Macho'

Ator reconcilia suas facetas de herói do western e grande cineasta em novo filme

16 set 2021 - 05h10
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Talvez, para falar sobre o novo filme de Clint Eastwood, se deva pegar carona no que sobre ele disse o britânico The Guardian. Cry Macho - O Caminho para Redenção poderá não ser o último filme de Clint. Aos 91 anos, ele segue como impávido colosso. Mas talvez seja o "ultimate", o definitivo. Todo filme de Clint poderia se chamar Cry Macho. O macho sensível, emotivo. Pense em Os Imperdoáveis, Gran Torino, Menina de Ouro, A Conquista da Honra, A Mula. Todos poderiam chamar-se Cry Macho.

Há dois ou três anos, Clint chegou a aventar a hipótese de aposentadoria, não do diretor, mas do ator. Disse que seguiria dirigindo, mas não tinha muito mais interesse em interpretar. O livro de N. Richard Nash, que coescreveu o roteiro, fez com que ele mudasse de opinião. O começo não poderia ser mais econômico. Clint faz um ex-campeão de rodeio. Perde o posto sumariamente - fim da linha para ele. Mas logo é chamado para uma missão. O homem que lhe estendeu a mão quando ele estava na pior quer que Clint o ajude a resgatar o filho que está no México. Um curto flash-back mostra o acidente que ele sofreu durante uma apresentação. Mais tarde, uma fala do diálogo informa que sua mulher e o filho morreram num acidente. Tudo isso abala, pode destruir um homem.

O empregador lhe diz: "Você me deve isso". E ele aceita. Velhos códigos de honra. No México, onde o garoto de 13 anos deveria estar vivendo com a mãe, a surpresa. Ela se refere ao próprio filho como "monstro". É rica, vive cercada de seguranças e, quando se encontram, está dando uma festa. O macho solta uma piada machista - quando uma mulher está rindo de felicidade, como ela, em geral o homem está com a braguilha aberta. Alguma feminista de carteirinha poderia citar o #MeToo para enquadrar o velho Clint. É pouco provável que alguém o faça. Tudo ocorre rapidamente.

Ele acha o garoto, bebendo tequila e metido nas brigas de galo. Caem na estrada, de volta aos EUA, mais exatamente ao Texas. O galo se chama Macho. Clint - o personagem - dá uma lição de vida ao garoto. Esse negócio de "macho" não tem nada a ver. Quase sempre quem se esconde por trás dessa fachada está tentando mascarar a própria fraqueza. A estrada é cheia de percalços - federales, o capanga amante violento da mãe do fugitivo. A dupla chega a uma pequena cidade. É acolhida por uma viúva que possui uma cantina. O garoto flagra a atração mútua que se estabelece entre os idosos. O caminho para (a) redenção passa pelo afeto.

O dever cede espaço para outros temas clintianos - a confiança, e a quebra dela. O garoto, que se ligou a Clint, vai se sentir traído por ele. Tudo simples e direto. Em filmes como Menina de Ouro e Gran Torino, Clint, como autor, colocou na tela histórias de sacrifício, no sentido cristão. O personagem que o próprio Clint interpreta está sempre tentando se redimir - de uma vida de excessos, de violência, de desamor. Esse Clint "cristão" está longe de ser uma novidade, mas nunca, como aqui, o garoto e ele encontram guarida numa igreja consagrada à Virgem. A viúva reclama - igreja não é hotel. E os chama para sua casa. A jornada será de transformação para o trio de protagonistas, Clint, o garoto e a viúva.

É uma regra básica. O crítico francês Michel Mourlet já disse que, no cinema, tout est, tudo se constrói, na mise-en-scène. E mais - o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores. Clint, aos 91 anos, começa a ficar um pouco encurvado - o peso da existência? Mas segue rijo como encarnação do macho sensível. Sua ligação com o western vem desde o começo de sua carreira. Nesse sentido, Cry Macho é pródigo em referências. A paisagem é parte da aventura, e do drama. O personagem dorme no chão de terra, como velho caubói que é. Apesar da idade, não perdeu o jeito com os animais e doma cavalos. Doma o garoto? O jovem aprende a dominar seus impulsos. No lombo do corcel, adquire segurança.

Cry Macho é, definitivamente - e sem preconceito -, um grande filme de velho. Os valores, o classicismo, tudo tem a marca de Clint. Ele não tenta enganar seu público, nem conquistar o público mais jovem, com fricotes de modernidade. Clint teve seus mestres, Don Siegel formado na montagem da velha escola de Hollywood, Sergio Leone estendendo o tempo nas cenas de longa duração de seus spaghetti westerns, que viravam ópera com as trilhas de Ennio Morricone. Justamente a trilha de Cry Macho. Clint sempre foi um reputado conhecedor de jazz. Dessa vez, ele oferece um regalo. Eydie Gormé e Trio Los Panchos. Eydie quem?

Eydie foi uma cantora norte-americana de jazz e pop. Aventurou-se pelos ritmos latinos, o improvável, mas bem-sucedido casamento entre jazz e bolero. Los Panchos foi um trio musical mexicano. Ajudou a transformar o bolero, nascido em Cuba, num gênero musical predominantemente romântico, e de sucesso internacional. Em 1964, o trio e Eydie lançaram o álbum Amor, com canções como História de Un Amor, Piel de Canela, Nosotros, Caminito, Noche de Ronda. Tinha também Sabor a Mí. "Tanto tiempo disfrutamos de este amor/ Nuestras almas se acercaron tanto así/ Que yo guardo tu sabor, pero tu llevas también sabor a mí/ Si negaras mi presencia em tu vivir/ Bastaria con abrazarte y conversar/ tanta vida yo te di, que por fuerza tienes ya/ Sabor a mí." É como uma viagem no tempo. Clint e a viúva dançam Sabor a Mí. O tempo do afeto. Perdido e reencontrado. Clint, quase centenário, não cessa de surpreender e maravilhar.

Clint Eastwood, de herói do western a grande autor

No começo dos anos 1970, Clint Eastwood era o durão de Hollywood que as feministas de todo o mundo amavam odiar. A par de ter sido o protagonista da trilogia do Estranho Sem Nome, que consolidou Sergio Leone, na Itália, como grande nome do spaghetti western, ele voltara aos EUA para se converter em astro nos filmes de Don Siegel. Surgiram Meu Nome É Coogan, Os Abutres Têm Sede e o primeiro Dirty Harry, Perseguidor Implacável. Em 1971, o próprio Clint converteu-se em diretor.

Antes cabe dizer que ele foi à Itália porque se tornara conhecido com uma série de western na TV, Rawhide, e ainda custava barato para os produtores. Diretor, fez um thriller psicanalítico (Perversa Paixão), uma retomada, na América, do personagem de Leone (O Estranho Sem Nome) e o romântico Interlúdio de Amor. Clint não estava só satisfazendo um capricho, como outros astros que também viraram diretores - Burt Lancaster, Kirk Douglas, John Wayne. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard inicia seu verbete sobre ele com uma observação pertinente. Quem iria imaginar que o herói mal barbeado e fumando a eterna cigarrilha dos spaghetti westerns de Leone se transformaria num dos mais importantes autores do seu tempo? Pois foi o que ocorreu.

Na direção, Clint volta e meia pagou tributo ao western. Considerado o gênero por excelência do cinema americano, o popular bangue-bangue esculpiu uma visão idealizada da conquista do Oeste. O imbróglio de Portal do Paraíso, de 1980, quando Michael Cimino foi acusado de levar a United Artists à bancarrota, tornou o western maldito. Foi transferido para as estrelas - na série Star Wars. Raros autores insistiram em percorrer as trilhas do Wild West, atores/diretores como Clint e Kevin Costner, que ganhou os Oscars de filme e direção de 1990, por Dança com Lobos. Clint também recebeu seus primeiros Oscars - de filme e direção - por um bangue-bangue, Os Imperdoáveis, de 1992. Entre 1972 e 92, fez também o barroco Josey Wales, o Fora da Lei e O Cavaleiro Solitário, recriando o imortal Shane do western clássico de George Stevens, Os Brutos Também Amam.

O próprio Clint parecia haver desistido do western. Cry Macho marca um retorno. Não é um bangue-bangue legítimo, mas se inscreve na tradição do gênero, e nisso é primo-irmão de outro Clint, de 1980, contemporâneo da monumental extravagância de Cimino. Bronco Billy está mais na essência dos espetáculos itinerantes do lendário William Cody (e que Robert Altman transformou em Buffalo Bill e os Índios/West Selvagem, de 1976). Um circo itinerante, um velho mocinho bêbado e o toldo que reproduz a bandeira remendada dos EUA. Nesse picadeiro, o republicano Clint mostra a diversidade que fez a grandeza da América e acolhe até o desertor da Guerra do Vietnã. Cry Macho, na fronteira mexicana, é sobre a tradição - no cinema e na vida. O velho astro de rodeios, o garoto rebelde e a mexicana de coração grande que os acolhe. Nonagenário, Clint acredita cada vez menos no próprio mito. Como sempre que ele se volta para o universo do western, é para dar lições críticas sobre os EUA.

Estadão
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