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A VIDA É BELA

RAPIDINHO

A comédia é o gênero mais difícil do cinema. Nada é mais constrangedor que comédia sem graça. O holocausto judeu é o maior crime contra a humanidade cometido neste século. Nada é mais perigoso que fazer piada com milhões de seres humanos mortos por uma ideologia doente. Fazer uma comédia sobre o holocausto, portanto, é uma quase insanidade, uma ousadia extrema.

Roberto Benigni provou ser louco o bastante para ousar. Está sofrendo agora vários ataques, quase todos de ordem moral, como se ele não tivesse o direito de contar piadas sobre fatos tão terríveis. Que grande bobagem! Ele não tinha o direito de fazer uma comédia sem graça, nem de distorcer a história, negando ou diminuindo o horror do holocausto. Mas "A vida é bela" é muito engraçado e, ao mesmo tempo, terrivelmente verdadeiro. O horror dos campos de concentração está ali, representado na medida exata, com o realismo necessário para manter o filme longe de qualquer revisionismo anti-semita, mas com a poesia e a liberdade fundamentais para permitir que ainda seja uma comédia.

"A vida é bela" é inesquecível e está acima de disputas de festivais e de possíveis Oscars. Benigni ousou na temática, emocionou milhões de pessoas, incomodou outras tantas, provocou discussões no mundo inteiro sobre a história do nosso século e sobre os limites éticos do cinema. O que pode um cineasta querer mais?


AGORA COM MAIS CALMA

"A vida é bela" tem recebido várias acusações, quase todas fora do campo cinematográfico. O filme tem um roteiro criativo e muito bem amarrado, que parte do clássico "pastelão" italiano, mas tem momentos de lirismo que lembram Fellini e de crítica social que lembram Chaplin. É muito bem filmado e interpretado.

Tem excelente direção de arte e a finalização (montagem e som) nada fica devendo aos estúdios de Hollywood. Nesse sentido, é quase inatacável. Então, como falar mal de "A vida é bela?" É simples: usando argumentos que estão acima do cinema. Argumentos morais, éticos, ideológicos (todos estes razoáveis) e, infelizmente, patrióticos (estes totalmente irracionais).

Vamos dividir os ataques em três grandes grupos: (1) o filme distorce a História e/ou desrespeita as vítimas do Holocausto; (2) o filme prega o individualismo e/ou o otimismo, quando a resposta aos nazistas deveria ser coletiva e racional; (3) o filme não denuncia o fato histórico com o rigor necessário, preferindo, em várias cenas, a representação simbólica ao realismo.

Em relação ao primeiro ataque (falta de rigor histórico, desrespeito às vítimas), há uma pequena confusão. Não cabe ao cinema ficcional relatar os fatos conforme foram. Cinema é arte, e esta relata os fatos conforme poderiam ser. Isto está evidente no mundo ocidental desde Aristóteles. Pretender que "A vida é bela" seja uma aula de história é não saber os limites e as possibilidades do cinema. Quanto às "ofensas", sinceramente, não vi uma sequer. Talvez os mais exaltados tenham sentido falta de mais ofensas aos nazistas, mais cenas em que eles apareçam como monstros matadores, à maneira de Spielberg em "O resgate do soldado Ryan". Para quê serviriam? Para nada além de aumentar o apelo emocional do filme, que, lembramos, é uma comédia. Se fosse um drama, um épico, até se justificaria. Mas Benigni sabia que sua única chance de fazer história (de verdade) seria manter o tom farsesco do início ao fim.

Segunda acusação: é um filme por demais otimista e individualista. Aqui, numa perspectiva mais sociológica ou filosófica, trata-se de dar a "A vida é bela" um falso cunho neo-liberal: no filme, o que importa é a criança que sobreviveu (e não todas as que morreram). É um evidente exagero. A morte das outras crianças e dos velhos é narrada com total clareza. Tanto os personagens adultos quanto o espectador são informados dos horrores e da chacina. O que queriam? Cenas de crianças morrendo envenenadas por gás? Eu passo. E adiantando um pouco a comparação que vem lá no final desta coluna: enquanto "Central do Brasil", ao mostrar aquela execução do menor sobre os trilhos, de forma tão explícita que parece inverossímil, suplica pela indignação do espectador, propõe o choque, pede a lágrima (até justificadamente, porque é um drama), "A vida é bela" deixa as mortes aconteceram atrás dos muros, porque é uma comédia. O suposto individualismo do personagem de Benigni é mais do que humano: é a única reação possível. E, como se não bastasse, há a cena da esposa de Benigni, não-judia, que entra no trem da morte por livre e espontânea vontade, para ficar ao lado de sua família. Pode haver um ato mais solidário e coletivo? Neo-liberal é, provavelmente, a mãe de quem chamou.

E a última pedra: o não-realismo. Benigni fez uma opção em seu roteiro: não ficar preso à verossimilhança. É muito mais fácil para construir piadas. É muito mais eficiente para contar uma história claramente unilateral (não importa ao cineasta retratar os "bandidos"). É fundamental para dar ao filme o caráter lúdico e aproximar o espectador do personagem infantil. Benigni fez questão de deixar esse não-realismo "na cara" do público, ao mostrar o amontado de cadáveres do campo de concentração como um grande painel, um cenário pintado, um grande signo do horror, em vez do horror realista. Benigni respeitou, e muito, as vítimas do holocausto, e conseguiu dar ao espectador minimamente sensível uma reflexão muito mais profunda do que, por exemplo, o didático "A lista de Schindler", ou o patriótico "o resgate do soldado Ryan".

Mas por quê, principalmente no Brasil, existe esse pequeno exército de inimigos de "A vida é bela"? A resposta é simples: porque este filme é "inimigo" de "Central do Brasil" na disputa do Oscar. Caberia a nós, deste lado da trincheira, solapar ao máximo as chances do rival. Arnaldo Jabor, no "Jornal Nacional" disse que "A vida é bela" é um filme enganador, falsamente brilhante, e que Benigni não sabe fazer cinema de qualidade. Pobre Jabor. Depois de confundir modernidade com PFL, agora confunde patriotismo com patriotada.

AGORA A INEVITÁVEL COMPARAÇÃO


Comparar "A vida é bela" a "Central do Brasil" é o mesmo que colocar uma peça leve de Mozart ao lado de uma sinfonia de Beethoven e perguntar: qual é a música melhor? Ou assistir a "Um convidado bem trapalhão" e logo depois a "Muito além do jardim", indagando: onde Peter Sellers atua melhor? É impossível comparar seriamente uma comédia (quase um pastelão) com um drama (quase um vale de lágrimas). Mas vamos lá. Não há dúvida que "A vida é bela" alcança seus objetivos primários (divertir, fazer rir) e ainda consegue inovar na narrativa, brincar com os gêneros cinematográficos e provocar polêmica entre historiadores, sociólogos e filósofos. Do outro lado, também não há dúvida que "Central do Brasil" atinge plenamente seus objetivos primários (emocionar, fazer chorar), mas, no meu entender, não consegue ir muito além disso. Onde está a polêmica, a grande questão de "Central do Brasil"? Se é a proposta da redenção daquele menino (e do Brasil dos "perdedores") pela volta ao convívio familiar, ou ao seu ponto geográfico de origem, sinceramente, é uma proposta que já nasce morta.

"Central do Brasil" é um filme de grande força emocional, realizado por equipe de excelente nível técnico, que representará o Brasil com dignidade nesta festa bastante brega que é o Oscar. Ele é muito melhor que "O quatrilho" e "O que é isso, companheiro", nossos concorrentes anteriores. Fernanda Montenegro é, certamente, muito melhor atriz que suas jovens e belas concorrentes. Para quem gosta de torcer e sacudir bandeira verde-amarela na frente da TV (não esquecendo que um ou dois Oscars seriam maravilhosos para o cinema brasileiro - tem que sacudir mesmo!), pode-se dizer que nosso time, desta vez, é bem mais confiável que o de Zagalo na final contra a França. Mas, para quem simplesmente gosta de cinema, a disputa é estúpida. A Itália não é nossa adversária na grande arena do cinema mundial. Benigni não é Paolo Rossi. E "A vida é bela" é um filme de exceção. Só não vê quem se esconde atrás da bandeira.


A Vida é Bela (Itália, 1997). De Roberto Benigni.


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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

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